top of page

O SEGUNDO VOTO NA ADPF 442 E O FUTURO DO ABORTO NO BRASIL

  • Paola Vasconcelos Hoffmann
  • 28 de out.
  • 6 min de leitura

ree










Paola Vasconcelos Hoffmann

 

Graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Coordenadora do Centro Brasileiro de Estudos Constitucionais (CBEC) da Graduação. Trabalhou no Núcleo de Solução Consensual de Conflitos do Supremo Tribunal Federal (NUSOL/STF) entre 2023 e 2025.

Assistente do Ministro Luís Roberto Barroso desde 2021.



A ADPF 442, ajuizada pelo PSOL em 2017, questiona a constitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam a interrupção voluntária da gestação. A ação busca reconhecer que esses dispositivos não são compatíveis com preceitos fundamentais da Constituição como dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, saúde e planejamento familiar.


Em 2018, a Ministra Rosa Weber, então Relatora, convocou audiência pública com o objetivo de trazer subsídios jurídicos, sociais e médicos para o julgamento. Ao longo de dois dias, o Supremo Tribunal Federal ouviu representantes dos diversos setores envolvidos na questão, entre especialistas, instituições e organizações nacionais e internacionais. A audiência foi estruturada em quatro blocos temáticos, conforme a linha argumentativa comum entre os participantes: científico, jurídico, políticas públicas e sociais. A metodologia adotada pela Ministra conferiu legitimidade democrática à análise constitucional da questão, ao reconhecer que o aborto não é apenas um tema penal, mas também de saúde pública, igualdade e liberdade individual.[1]


Desde a audiência no Supremo, não houve mudanças sobre o tema na legislação, mas o debate sobre direitos sexuais e reprodutivos ganhou força nos outros Poderes da República.[2] A ampla repercussão da audiência expôs a complexidade técnica e moral do tema, e mostrou ao STF que naquele momento a sociedade brasileira ainda não tinha maturidade suficiente para uma decisão definitiva. O processo permaneceu paralisado por anos, até ser retomado em 2023, quando a Ministra Rosa Weber, prestes a se aposentar, apresentou seu voto.


No voto, a Ministra destacou a centralidade da autonomia reprodutiva e a necessidade de prevenir violência institucional. Sustentou que criminalizar o aborto impõe sofrimento desnecessário, limita decisões médicas seguras, e que o direito à vida deve ser interpretado à luz da dignidade, da liberdade e da igualdade, de forma contextualizada  não apenas pela literalidade do Código Penal.[3]


Em seguida, o Ministro Luís Roberto Barroso pediu destaque no plenário virtual.[4] O Ministro, que desde antes já se manifestava favorável à descriminalização do aborto[5], já na Presidência do Supremo Tribunal Federal, optou por não pautar o processo, mesmo tendo poder para fazê-lo. Em diversas ocasiões, afirmou que “o debate ainda não está amadurecido”[6] na sociedade brasileira para que o STF decida de forma definitiva.


Passada a Presidência, em seu último dia como Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso decidiu retomar o julgamento da ADPF 442, recolocando o tema do aborto na pauta da Suprema Corte. O gesto teve forte valor simbólico: foi seu último ato no Tribunal, marcado por coerência com sua trajetória como jurista e defensor dos direitos fundamentais.


O Ministro que sempre sustentou a necessidade de descriminalizar o aborto, apresentou voto reafirmando que a interrupção da gestação deve ser tratada como uma questão de saúde pública, não de direito penal, e a criminalização não só falha em reduzir o número de abortos, como também exacerba desigualdades sociais, atingindo principalmente mulheres pobres e periféricas, enquanto aquelas com melhores condições financeiras conseguem recorrer a métodos seguros fora do país. Reforçou que a proteção constitucional da vida deve ser interpretada à luz da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da igualdade de gênero e da autonomia reprodutiva, e que direitos fundamentais não podem depender da moralidade da maioria política nem de preceitos religiosos. Em síntese, seu voto articulou princípios constitucionais, evidências científicas e comparações internacionais, evidenciando que a função do Supremo Tribunal Federal é garantir que o direito das mulheres seja efetivamente protegido, sem sujeitá-las a punição penal.[7]


Após o voto na ADPF 442, o Ministro Barroso concedeu medida cautelar também nas ADPFs 989 e 1207. O pedido surgiu a partir de duas demandas principais. Primeiro, entidades da sociedade civil, como a Sociedade Brasileira de Bioética e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva, pediram o reconhecimento de violação massiva de direitos fundamentais na saúde pública devido às barreiras ao aborto legal. Segundo, associações de enfermagem e o PSOL solicitaram que, além dos médicos, outros profissionais de saúde pudessem atuar nos procedimentos de interrupção da gestação em situações previstas em lei.[8]


Na decisão da medida cautelar, o Ministro determinou a suspensão de procedimentos administrativos e penais, bem como de processos e decisões judiciais contra profissionais de enfermagem que prestassem auxílio às interrupções legalmente admitidas.[9]


A divergência foi inaugurada pelo Ministro Gilmar Mendes, que adotou postura mais cautelosa diante do pedido. Em seu voto, ressaltou a ausência de urgência capaz de justificar a liminar e destacou que as ações em questão vinham seguindo o trâmite regular sob a relatoria do Ministro Edson Fachin: na ADPF 989, o último despacho relevante foi em agosto de 2023, requisitando informações ao Ministério da Saúde; na ADPF 1207, proposta em fevereiro de 2025, o relator havia solicitado dados às autoridades competentes e seguido o rito legal para julgamento de mérito. O ministro ressaltou que o deferimento de medida cautelar depende da presença simultânea dos requisitos legais e que a ausência de qualquer um deles inviabiliza sua concessão.


Assim, a liminar concedida pelo Ministro Luís Roberto Barroso foi derrubada na manhã seguinte, com maioria formada no plenário virtual, adiando novamente os efeitos imediatos do julgamento e reforçando a complexidade institucional do tema.[10]


No Supremo, observa-se uma linha clara: os ministros apresentam votos detalhados e fundamentados, mas evitam levar o tema a debate direto no plenário, refletindo sua sensibilidade política e social. A derrubada da liminar nas ADPFs 989 e 1207 evidencia tanto a complexidade do tema quanto a cautela institucional do Tribunal. Embora os direitos reprodutivos sejam reconhecidos como urgentes e relevantes, há um cuidado em ponderar os impactos imediatos. Esses movimentos mostram a tensão entre pressões sociais, políticas e jurídicas.

Ao final, observa-se: o futuro do aborto no Brasil está estreitamente ligado à ADPF 442 e à aposentadoria dos ministros. Em um contexto em que as iniciativas legislativas avançam apenas para restringir direitos, o Tribunal tem seguido uma abordagem gradual, registrando votos e consolidando posições sobre a interrupção voluntária da gestação sem levar o tema a confronto direto no plenário, diante da sensibilidade social e da complexidade jurídica envolvida.

 


[1] Ata da 23ª  Audiência Pública realizada pelo Supremo Tribunal Federal:  https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/audienciasPublicas/anexo/TranscrioInterrupovoluntriadagravidez.pdf 

[2] Como abordado por Gabriela Rondon, de 2018 a 2020, o governo de Jair Bolsonaro elegeu a agenda de gênero como um dos centros de sua política, manifestando-se de forma restritiva desde a educação até as relações exteriores. O então chanceler Ernesto Araújo alinhou a posição oficial do Brasil a países que defendiam a exclusão dos termos “gênero” e “saúde sexual e reprodutiva das mulheres” de resoluções internacionais, mesmo em temas como casamento infantil e violência sexual. Esse contexto mostra que, embora o Poder Judiciário não tenha discutido ativamente a descriminalização do aborto nesse período, a questão dos direitos sexuais e reprodutivos ganhou destaque político e simbólico no país, refletindo o crescimento do conservadorismo e a centralidade do tema na agenda pública. Disponíviel em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-ano-apos-audiencia-sobre-aborto-no-stf-a-necessaria-independencia-do-judiciario 

[3]  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442. Relatora: Min. Rosa Weber. Brasília, 2023. Disponível em: https://digital.stf.jus.br/decisoes-monocraticas/api/public/votos/417866/conteudo.pdf 

[4] O instrumento usado para registrar formalmente o voto da relatora sem expor o Tribunal a uma discussão pública naquele momento. A medida permitiu que o posicionamento da Ministra ficasse oficialmente registrado, mas adiou o enfrentamento direto do tema. 

[5] Em 2019, durante a Brazil Conference at Harvard & MIT, afirmou que “se homens engravidassem, a questão já estaria resolvida há muito tempo”, em crítica à desigualdade de gênero que marca o debate. O Ministro já havia se manifestado publicamente em diversas ocasiões a favor da descriminalização do aborto. No seu livro Sem data venia: Um olhar sobre o Brasil e o mundo (2020, p. 156), defendeu que políticas públicas sobre o tema devem priorizar a dignidade, a autonomia e a saúde das mulheres, e não a punição. Em entrevista concedida em 2022, reiterou que “a criminalização do aborto é uma péssima política pública”, sustentando que o Estado deve investir em educação sexual e acesso a contraceptivos, não em repressão penal. Falas disponíveis em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2022/06/27/barroso-critica-criminalizacao-do-aborto-penaliza-as-mulheres-pobres.htm#:~:text=O%20ministro%20Lu%C3%ADs%20Roberto%20Barroso%2C%20do%20STF,%C3%A9%20uma%20p%C3%A9ssima%20pol%C3%ADtica%20p%C3%BAblica%2C%20porque%20penaliza%2C e https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2019/04/06/se-homens-engravidassem-aborto-ja-estaria-resolvido-ha-tempo-diz-barroso.htm 

[6] “[...] o ministro disse que não pretende pautar o julgamento em breve. "Uma Suprema Corte não pode estar totalmente dissociada do sentimento social", afirmou. "Faço esse esforço de levar ao debate público, e espero que [a questão] possa amadurecer para levar a julgamento". Matéria do Uol, disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/06/11/barroso-criminalizar-aborto-politica-perversa.htm 

[7] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442. Relator: Min. Flávio Dino. Brasília, 2025. Disponível em:  https://digital.stf.jus.br/decisoes-monocraticas/api/public/votos/419322/conteudo.pdf 

[8] “Liminar afasta criminalização de profissionais de enfermagem que atuam em procedimentos de aborto legal. Na mesma decisão, ministro Barroso estabelece que os órgãos públicos de saúde não podem criar obstáculos não previstos em lei para a realização do aborto legal.” Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/liminar-afasta-criminalizacao-de-profissionais-de-enfermagem-que-atuam-em-procedimentos-de-aborto-legal/ 

[9]  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 442. Relator: Min. Luís Roberto Barroso. Brasília, 2025. Disponível em:  https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15381452599&ext=.pdf 

[10] “STF tem maioria para protesto liminar que autorizou aborto legal por profissionais de enfermagem. Em sessão extraordinária virtual, sete ministros já votaram para não manter a decisão do ministro Barroso“ Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-tem-maioria-para-derrubar-liminar-que-autorizou-aborto-legal-por-profissionais-da-enfermagem/ 

bottom of page