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NOTÍCIAS DAS ÚLTIMAS SEMANAS: AÇÕES E REFLEXÕES SOBRE IGUALDADE DE GÊNERO E RACIAL NO PODER JUDICIÁRIO

  • Manuelita Hermes
  • 9 de jun.
  • 7 min de leitura























Manuellita Hermes

Doutora summa cum laude em Direito e Tutela pela Università degli studi di Roma Tor Vergata (Itália) e em Direito, Estado e Constituição pela UnB, com períodos como pesquisadora visitante no Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (Alemanha) e no Institut de recherche en droit international et européen de la Sorbonne (França). Professora da graduação e do programa de pós-graduação do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Docente da Escola Superior da AGU. Coordenadora no Centro de Estudos Constitucionais Comparados da Universidade de Brasília (UnB). Procuradora Federal. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica e Racial do Comitê de Diversidade e Inclusão da AGU.




As últimas semanas trouxeram fatos que permitem a renovação de reflexões sobre um tema que deve estar sempre presente na interpretação e na atuação à luz da Constituição Federal de 1988: a presença feminina e negra em busca da igualdade de posições em tribunais do Brasil.

 

Indico, inicialmente, a definição, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), no dia 28 de maio de 2025, de listas tríplices para a escolha de integrantes da advocacia para a composição do Tribunal Superior Eleitora (TSE). A grande novidade dos dois elencos apresentados é a existência de uma lista integralmente formada por mulheres, brancas e negra.

 

A formação de duas listas acarreta, necessariamente, a escolha de uma mulher como Ministra titular do TSE, em total consonância com a necessidade de ampliação da participação feminina. Quanto ao âmbito eleitoral, registro a Resolução n. 23.746/2025, do TSE, que alterou o ato normativo anterior, para incluir a promoção de mulheres nos cargos de magistradas dos Tribunais Regionais Eleitorais providos por advogadas, mediante listas tríplices com participação de mulheres e homens, a fim de se atingir percentuais iguais, com perspectiva interseccional de raça e etnia.

 

Certo é que a Resolução mencionada destina-se apenas ao Tribunais Regionais Eleitorais. Seria uma contradição, contudo, que o próprio TSE, órgão do qual emana o ato normativo, não o cumprisse, no mínimo, como forma de exemplo. E foi exatamente assim a interpretação e a atuação da Presidente da Corte, a Ministra Cármen Lúcia, para quem “Seria um contrassenso e até uma descortesia com os tribunais regionais que o próprio TSE não tivesse, em duas listas, alguma mulher ou listas de mulheres, como estamos determinando”[1].

 

Realmente, apenas resoluções e protocolos para alhures e para outrem não são suficientes a encetar a alteração da realidade dos tribunais superiores em perspectiva interseccional. É necessária a verdadeira vontade política de implementação à luz da consciência da deficiência histórica da representatividade de gênero e racial no Poder Judiciário e da urgência da concretização de soluções proporcionadoras da igualdade material.

 

O segundo fato de grande relevância quanto ao tema foi a formação, no dia 2 de junho de 2025, no âmbito do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, da primeira lista totalmente feminina com candidatas à promoção ao cargo de desembargadora, a fim de ocupação da vaga aberta em razão da aposentadoria de um desembargador. Trata-se da implementação dos termos estatuídos pela Resolução n. 525/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que fixa ação afirmativa para o acesso aos tribunais de 2º grau, editada durante a Presidência da Ministra Rosa Weber. As listas de merecimento, desde então, hão de ser alternadas entre mistas e femininas, até que seja atingida a paridade de gênero em cada tribunal.

 

A efetivação de ações afirmativas na linha determinada pelo ato normativo do CNJ de 2023 não está livre de percalços, como demonstra a resistência ocorrida no tocante ao cumprimento, pelo Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo TJ/SP, uma vez que um grupo de magistrados impetrou mandado de segurança (MS) contra o edital lançado para a vaga da magistratura de segundo grau exclusivamente para juízas, em busca do incremento da equidade de gênero na composição da Corte estadual. Após a extinção do MS pelo próprio TJ/SP, houve recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) (RMS n. 75226/SP), que, por decisão monocrática do Ministro Paulo Sérgio Domingues exarada em 28 de fevereiro de 2025, negou provimento ao recurso ordinário e manteve o entendimento a quo.

 

Sobre iniciativas do CNJ em prol da equidade de gênero e racial, cito, ainda, a anterior Resolução n. 255/2018, que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário à época da Presidência da Ministra Cármen Lúcia; o Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, adotado em 2021 na Presidência do Ministro Luiz Fux; e o Protocolo para julgamento com perspectiva racial, da lavra da Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso.

 

Seguindo adiante, ainda que não especificamente relacionado a tribunais, destaco o terceiro fato que reputo digno de menção e, em verdade, celebração: a sanção presidencial, no dia 3 de junho, da nova Lei de Cotas no Serviço Público, a Lei n. 15.142, de 3 de junho de 2025[2]. Após longa tramitação do Projeto de Lei (PL) n. 1.958/2021, a Lei reserva às pessoas pretas e pardas, indígenas e quilombolas o percentual de 30% (trinta por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União e nos processos seletivos simplificados para o recrutamento de pessoal nas hipóteses de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público para os órgãos da administração pública federal direta, as autarquias e as fundações públicas.

 

Houve incremento do percentual e a inclusão de indígenas e quilombolas como grupos autônomos. A atuação do Congresso Nacional finalizou-se após o prazo decenal de avaliação da lei anterior, cuja vigência seria até 2024, mas foi, à unanimidade, prorrogada pelo Plenário do STF, que referendou medida cautelar que manteve a ação afirmativa em vigor até que fosse sancionada uma nova legislação[3].

 

Na noite do dia 3 de junho de 2025, mesmo dia da sanção, houve, no Espaço Cultural do STJ, o lançamento do livro intitulado “Construção de um Legado para Igualdade de Direitos às Mulheres — em homenagem à ministra Fátima Nancy Andrighi”, coordenado pelas queridas colegas advogadas, privada e pública, respectivamente, Rosane Rosolen de Azevedo Ribeiro e Rita Dias Nolasco. À ocasião, o Ministro Herman Bejamin, Presidente do STJ, salientou em seu discurso a escassa quantidade de mulheres e única presença negra na composição do chamado Tribunal da Cidadania, em nítida demonstração de deficiência igualitária e cidadã, cuja correção é premente.

 

Como afirmei no artigo que honrosamente publiquei na obra então lançada[4], há previsões que devem ser sistematicamente interpretadas, como, por exemplo, o valor-fonte da dignidade humana, a cidadania, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o pluralismo, a proibição de todas as formas de discriminação e a prevalência dos direitos humanos.

 

A igualdade é pilar do constitucionalismo democrático, que nasce como formal – instrumento de preservação das relações de poder desiguais – e, paulatinamente, galga a sua materialidade por meio do constitucionalismo social, que, ao buscar corrigir os efeitos do liberalismo, requer distribuição igual de oportunidades e a intervenção do Estado para que seja efetiva[5].

 

A Carta brasileira não foi expressa quanto à igualdade de gênero e racial no âmbito do Poder Judiciário, diferentemente, por exemplo, da Constituição da África do Sul, que tem o artigo 174.2, que prevê que “A necessidade de o Judiciário refletir amplamente a composição racial e de gênero deve ser considerada na indicação dos membros do Judiciário”[6].

 

No Brasil, há uma sub-representação feminina nos Tribunais e, neste ponto, tem-se um reflexo de algo que ocorre na sociedade, a exigir ações, como as mencionadas neste texto, na caminhada de aprimoramento democrático, que envolve pluralismo e diversidade.

 

O Judiciário, como guardião da democracia, deve espelhar a pluralidade do corpo social, sem discriminação e regido pela igualdade e pela solidariedade, inclusive sob o prisma interseccional. A atual configuração do Poder Judiciário no Brasil é um produto histórico da sociedade. A eficácia do direito, tão propalada e almejada, perpassa sobretudo pela construção de formas de erradicação da desigualdade de gênero e da impregnada discriminação que ainda se encontra em diversos âmbitos da sociedade brasileira de matriz patriarcal.

 

À sociedade democrática interessa o enriquecimento encetado pela pluralidade em todos os graus de jurisdição. Não se está a falar apenas de direitos individuais, das mulheres em si, mas do direito coletivo de representatividade, de pluralidade, em suma, de democracia real. Frente à desigualação decorrente de uma construção social que precisa ser corrigida em toda a sociedade, inclusive no Poder Judiciário, insta efetivar uma modificação sociocultural da sociedade, com a concepção de igualdade de gênero sob a perspectiva multidimensional, de redistribuição e de reconhecimento, a fim de implementar a igualdade material.

 

Desse modo, tais iniciativas demonstram a atenção à necessidade de se manter firme no desiderato de efetivar o equilíbrio de gênero e racial, em busca de paridade e diversidade na magistratura, sob a ótica interseccional, com uma abordagem inclusiva e igualitária. Urge, pois, que se proporcione pluralidade em todos os níveis, como nítida ferramenta de combate à discriminação, para que se fomente a cultura de equilíbrio e representatividade, em aplicação da almejada igualdade material constitucionalmente prevista.


[1] Vide TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. STF define listas tríplices para escolha de integrantes do TSE na classe de juristas: Ministro Gilmar Mendes foi reconduzido para segundo mandato como ministro substituto. Disponível em: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2025/Maio/stf-define-listas-triplices-para-escolha-de-integrantes-do-tse-na-classe-de-juristas. Acesso em: 5 jun. 2025.

[2] BRASIL. Lei nº 15.142, de 3 de junho de 2025. Reserva às pessoas pretas e pardas, indígenas e quilombolas o percentual de 30% (trinta por cento) das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União e nos processos seletivos simplificados para o recrutamento de pessoal nas hipóteses de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público para os órgãos da administração pública federal direta, as autarquias e as fundações públicas; e revoga a Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. Diário Oficial da União: seção 1, Edição 104, Brasília, DF, p. 1, 4 jun. 2025.

[3] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 7.654 MC-Ref. Tribunal Pleno, Rel.: Min. Flávio Dino, DJe 26.6.2024.

[4] HERMES, Manuellita. Representação Feminina no Poder Judiciário do Brasil. In: RIBEIRO, Rosane Rosolen de Azevedo; NOLASCO, Rita Dias (coords.) Construção de um legado para igualdade de direitos às mulheres: em homenagem à Ministra Fátima Nancy Andrigui. Londrina: Thoth, 2025, p. 245-251.

[5] GARAY MONTAÑEZ, Nilda. Igualdad y perspectiva de género: a propósito del bicentenario de la Constitución de 1812. Pensamiento Constitucional, n° 17, 2012, p. 207; 213.

[6] SOUTH AFRICA. Constitution of the Republic of South Africa, 1996. English text signed by the President; Promulgation Date: 18 December 1996; Commencement Date: 4 February 1997 – unless otherwise indicated. Disponível em: https://www.gov.za/documents/constitution/constitution-republic-south-africa-04-feb-1997.  Acesso em: 5 jun. 2025.

 

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