O PROCESSO ESTRUTURAL – BREVE ANÁLISE SOBRE A SUA NATUREZA E OS DESTAQUES DO PROJETO DE LEI 3/25
- Ivana Ruíz
- 27 de mai.
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Ivana da Cunha Leite Ruiz
Mestrado em Direito Constitucional (IDP/DF). LL.M em Processo nas Cortes Superiores (Mackenzie/DF). Pós-Graduação em Direito Civil e Processual Civil (CIESA/AM). Membro das Comissões da Advocacia nos Tribunais Superiores, de Direito Eleitoral e Direito Condominial. Advogada Sócia de Ivana Leite Ruiz Sociedade Individual de Advocacia.
No ano de 2024, foi elaborado o Projeto de Lei do Processo Estrutural, por uma comissão de juristas. Presidida pelo ex-Procurador-Geral da República, Augusto Aras, a comissão teve como relator, o Desembargador Edilson Vitorelli, do Tribunal Regional Federal da 6ª Região. O Senador Rodrigo Pacheco protocolou o Projeto de Lei n. 3/25, em 31 de janeiro de 2025.
Em que pese o entendimento do relator do PL n. 3/2025 ser contrário ao estabelecimento de um conceito para os processos estruturais, o texto aprovado os define como “ações civis públicas destinadas a lidar com problemas estruturais”, os quais, por sua vez “são aqueles que não permitem solução adequada pelas técnicas tradicionais do processo comum, individual ou coletivo” (art. 1º, § 1º).
Trata-se de processo que rompe com o modelo tradicional – individual e adversarial – e permite a participação de múltiplos atores, como amici curiae, agências públicas, organizações civis, com diversos papéis representativos. Traduz importante ferramenta para a concretização de direitos fundamentais, além da efetividade das decisões judiciais em demandas de grande impacto social.
Não se trata de tema novo, porém, a forma como as decisões estruturantes são construídas, os limites da atuação judicial na definição de políticas públicas e os mecanismos para garantir o cumprimento efetivo dessas decisões são temas cada vez mais atuais, que merecem nossa atenção.
PROCESSO ESTRUTURAL E A LEGITIMIDADE DA ATUAÇÃO JUDICIAL TRANSFORMADORA
Importa compreender que no processo estrutural, o juiz atua não apenas para resolver conflitos intersubjetivos, mas para remover condições que ameaçam valores constitucionais. Segundo a ótica de Owen M. Fiss, a tarefa do magistrado não é “declarar quem está certo ou errado, calcular o valor da indenização, nem formular um decreto destinado a impedir algum ato isolado. A tarefa é remover a condição que ameaça os valores constitucionais”[1].
Na visão de Fiss [2], o chamado processo estrutural, é uma forma de litígio através da qual o Judiciário intervém para reorganizar grandes instituições públicas, buscando aplacar ameaças sistêmicas a direitos constitucionais – como o racismo institucional ou condições de prisões desumanas.
Esse modelo se distancia radicalmente do ideal de neutralidade passiva, aproximando-se da ideia habermasiana de que o direito deve ser concebido como instrumento de institucionalização da razão prática. Para Jürgen Habermas [3], o direito possui uma função integradora na sociedade moderna, operando como meio de coordenação social e de proteção de direitos fundamentais (Faktizität und Geltung, 1992).
A atuação judicial transformadora, especialmente no processo estrutural, materializa essa função integradora e emancipatória do direito, conferindo concretude às promessas normativas da Constituição.
A atuação do STF na ADPF 347 [4], (estado de coisa inconstitucional) e, também, na ADI 3510 [5], (Reforma da Previdência e princípio da confiança), que declarou inconstitucional a Emenda Constitucional nº 41/2003, na parte que impunha regime jurídico prejudicial aos servidores públicos, são exemplos da concretização dessa função emancipatória do Judiciário brasileiro.
Cite-se, ainda, o RE 566471 [6], (Direito à saúde e fornecimento de medicamentos), com o STF decidindo sobre a obrigação do Estado de fornecer medicamentos de alto custo, mesmo sem registro na ANVISA, em determinadas hipóteses.
Nesses casos, a Suprema Corte não hesitou em intervir estruturalmente para proteger direitos fundamentais e reequilibrar a ordem constitucional.
Características do Processo Estrutural Segundo o Projeto de Lei n. 3 de 2025
De acordo com o projeto de lei que versa sobre o processo estrutural, suas principais características expressas são:
· multipolaridade;
· impacto social;
· prospectividade;
· natureza incrementada e duradoura das intervenções necessárias;
· complexidade; e
· existência de situação grave de contínua e permanente irregularidade, por ação ou omissão; e de
· intervenção no modo de atuação de instituição pública ou privada.
Merece destaque, ainda, a previsão da participação de amici curiae, nos artigos 5º, III e 6º, § 2º, quando o magistrado julgar pertinente a “intimação de terceiros que possa contribuir para a análise estrutural do processo” e quando o caráter do litígio estrutural não for consensual[3], permitindo ao juiz a realização de audiência para ouvir as partes, facultada a ”participação de especialistas, representantes dos grupos sociais impactados e de outros sujeitos que possam contribuir para o esclarecimento da questão”, em consonância com o que estabeleceu o artigo 138 do CPC/2025.
A previsão expressa da participação do amigo da corte é muito bem-vinda, considerando os reflexos abrangentes das decisões proferidas no âmbito dos processos estruturais, que podem ir muito além das partes envolvidas na demanda.
Entendemos que a ausência dessa previsão não prejudicaria a sua intervenção, haja vista a autorização do CPC em vigor. Contudo, o projeto de lei sob comento está a estabelecer essa participação mediante a ausência de concordância quanto ao caráter estrutural da disputa, situação na qual reconhece-se a contribuição da atuação de agentes externos no auxílio da compreensão sobre questão essencial para os rumos a serem tomados pelo processo.
Trata-se, portanto, de projeto de lei elaborado com o intuito de lançar luzes sobre o tema que, na prática, já vem no centro do debate de várias questões relevantes, tais como as que vem sendo colocadas perante a Suprema Corte, visando estabelecer parâmetros para a atuação do Judiciário.
Ainda nos idos de 1979, Owen Fiss promoveu uma análise do processo estrutural que revela uma concepção sofisticada e inovadora da função judicial, que transcende a mera resolução de disputas e confere ao Judiciário um papel central na construção e preservação dos valores constitucionais.
O processo estrutural emerge, nesse contexto, como um instrumento legítimo e necessário para a superação de práticas institucionais sistematicamente violadoras de direitos fundamentais.
Nada obstante o Judiciário não se furte ao enfrentamento de questões que se apresentam como litígios estruturais, como ocorreu com a conhecida tragédia da cidade mineira de Mariana e tantas outras ações submetidas ao Supremo Tribunal Federal, não temos até o momento um regramento positivado estabelecendo os parâmetros para tais demandas.
Nesse sentido, a iniciativa da elaboração de um Projeto de Lei destinado a fornecer as balizas dentro das quais as partes e os magistrados possam atuar, com maior segurança é, não só louvável do ponto de vista normativo, propriamente dito, como representa um passo importante para fomentar debates qualificados acerca do tema.
[1] FISS, Owen M. Foreword: The Forms of Justice. Harvard Law Review, vol. 93, p. 1-58, 1979.
[2] Op. Cit. pp.27-28.
[3] HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung: Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.
[4] STF, ADPF 347, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 09/09/2015.
[5] STF, ADI 3510, Rel. Min. Ayres Britto, j. 18/08/2007.
[6] STF, RE 566471, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 20/09/2024.
Parabéns, Ivana. Excelente análise!
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