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A ROMANTIZAÇÃO DA MATERNIDADE E O MITO DO INSTINTO MATERNO: QUANDO O AMOR É USADO PARA PUNIR

  • Jackeline Guimarães Santos
  • 16 de out.
  • 4 min de leitura

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Jackeline Guimarães Santos

Pós-graduada em Direito de Família e Sucessões (IDP). Especialista em Direito de Gênero. Advogada.



Em uma sociedade que insiste em transformar o amor materno em obrigação moral e jurídica, o discurso do “instinto materno” ainda opera como ferramenta de controle sobre as mulheres. Sob o manto da romantização da maternidade, perpetua-se a ideia de que toda mulher nasceu para cuidar, renunciar e se sacrificar — e que qualquer desvio dessa expectativa é sinal de falha, frieza ou, pior, de inaptidão para exercer a maternidade.


Essa construção cultural, reproduzida inclusive em decisões judiciais, gera uma divisão desigual de responsabilidades parentais, na qual o pai é frequentemente visto como “ajudante”, enquanto a mãe é a “responsável natural” pelos cuidados, independentemente de sua realidade pessoal, emocional ou profissional. O discurso do “instinto” serve, assim, como álibi moral para a ausência paterna e para a sobrecarga feminina — uma sobrecarga que o sistema de Justiça, muitas vezes, chancela.


O mito do instinto materno e o olhar do Judiciário


A filósofa e escritora Elisabeth Badinter já alertava, em sua obra: Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno (1980), que o instinto materno não é natural, mas um construto histórico e social. No entanto, a crença de que a mãe deve, por natureza, suportar tudo em nome do filho ainda ecoa em muitas decisões judiciais.


O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem enfrentado, gradualmente, essa questão ao reconhecer que o cuidado parental deve ser compartilhado de forma efetiva, e não simbólica. Em julgado paradigmático (REsp 1.629.189/DF), a Corte afirmou que a guarda compartilhada é regra, e que a divisão equilibrada das responsabilidades é essencial para o melhor interesse da criança — não bastando a fixação formal da guarda, mas sua execução concreta.

Contudo, a prática revela que a aplicação desses princípios ainda recai, na maioria das vezes, sobre os ombros maternos. Quando há conflito entre os genitores, é comum que o Judiciário atribua à mulher o papel de “guardião moral” da família, tratando o pai como coadjuvante. Essa assimetria reforça estereótipos de gênero e abre espaço para uma forma sutil, mas devastadora, de violência processual.


Violência processual contra mulheres-mães


A violência processual de gênero ocorre quando o próprio processo judicial se transforma em instrumento de opressão. Em disputas de guarda, alimentos ou convivência, é frequente que as mulheres sejam submetidas a um escrutínio moral que nada tem a ver com o mérito jurídico da causa.


O STJ, no AgInt no AREsp 1.553.134/SP, reconheceu a necessidade de coibir comportamentos abusivos no processo que possam revitimizar mulheres. Ainda que a decisão não trate diretamente da maternidade, o precedente aponta para um caminho interpretativo que exige do Judiciário sensibilidade de gênero e compromisso com a paridade parental.


É comum que mães sejam acusadas de alienação parental por buscarem proteger os filhos de situações de abuso, enquanto pais ausentes ou negligentes são poupados sob o argumento de “preservar o vínculo paterno”. O resultado é a culpabilização da mulher por exercer, com zelo, o mesmo cuidado que a sociedade espera que ela exerça — mas que, paradoxalmente, o sistema pune quando ela o faz de modo autônomo.


A falsa neutralidade judicial e a necessidade de um olhar de gênero


A aparente neutralidade do sistema judicial mascara uma estrutura que, muitas vezes, reproduz desigualdades patriarcais. Ao julgar a partir de um ideal abstrato de “mãe perfeita”, o Judiciário ignora as condições concretas de vida das mulheres, perpetuando a desigualdade de gênero na parentalidade.


Nesse contexto, destaca-se o advento dos julgamentos baseados na perspectiva de gênero, implementados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Resolução nº 492/2023, que determina que todos os órgãos do Poder Judiciário devem adotar uma análise sensível às desigualdades estruturais entre homens e mulheres. Essa política reforça a necessidade de decisões judiciais que compreendam as dinâmicas de poder e as violências simbólicas que atravessam as relações familiares, especialmente quando envolvem a maternidade. Nesse contexto, destaca-se o advento dos julgamentos baseados na perspectiva de gênero, implementados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio da Resolução nº 492/2023, que determina que todos os órgãos do Poder Judiciário devem adotar uma análise sensível às desigualdades estruturais entre homens e mulheres. Essa política reforça a necessidade de decisões judiciais que compreendam as dinâmicas de poder e as violências simbólicas que atravessam as relações familiares, especialmente quando envolvem a maternidade.


O Enunciado nº 5 da Recomendação CNJ 128/2022, que institui diretrizes para a perspectiva de gênero no Poder Judiciário, reforça a necessidade de decisões livres de estereótipos e preconceitos. Aplicar essa lente é reconhecer que a maternidade não é destino, mas uma experiência social complexa — e que exigir heroísmo das mães, enquanto se absolve a ausência paterna, é uma forma de injustiça institucional.


Por um direito que não puna o amor


Desconstruir a romantização da maternidade é também um ato jurídico. É reconhecer que o amor materno não pode ser moeda de troca nem critério de julgamento. O sistema de Justiça precisa compreender que cuidar não é atributo biológico, mas uma responsabilidade compartilhada entre quem gera e quem coexiste.


O desafio é construir uma jurisprudência que proteja mulheres sem lhes impor o fardo da perfeição. Que reconheça o cuidado como valor humano — e não como penitência feminina. Porque o verdadeiro instinto que precisamos resgatar é o da justiça com igualdade de gênero.



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