O SISTEMA DE PRECEDENTES E A INOBSERVÂNCIA DAS DECISÕES ESPECIALIZADAS DO TST
- Maysa Dias Simões Vieira
- 25 de jun.
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Maysa Dias Simões Vieira
Pós-graduada em Execução Trabalhista pelo Instituto Legale Educacional. Bacharela em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Advogada em Direito do Trabalho com atuação contenciosa enfatizada na jurisdição do Tribunal Superior do Trabalho - TST e do Supremo Tribunal Federal - STF.
Nos últimos anos, o ordenamento jurídico brasileiro tem avançado na construção de um sistema cooperativo de precedentes qualificados, voltado à promoção de uma maior interlocução entre os tribunais e os demais órgãos do Poder Judiciário. Esse movimento decorre da necessidade premente de enfrentar o elevado volume de processos em tramitação, que compromete a eficiência da prestação jurisdicional e retarda o efetivo acesso à justiça pela população.
Nesse novo paradigma, supera-se a figura do juiz "artesão", que decide caso a caso de forma isolada. A fim de garantir maior celeridade, segurança jurídica e isonomia, torna-se indispensável a sistematização e uniformização dos entendimentos jurisprudenciais para o julgamento de demandas substancialmente idênticas.
De fato, o sistema de precedentes auxilia no julgamento de processos massificados de extrema semelhança, reduzindo consideravelmente a quantidade de ações. A eficácia e a celeridade são demonstradas nas tabelas de casos julgados, mas será que o princípio da primazia do mérito está sendo observado? Antes de responder essa pergunta é necessário explorar, de maneira suscinta, o contexto histórico da Corte Laboral e a aptidão dos juízes trabalhistas.
Com a Constituição de 1946, a Justiça do Trabalho foi definitivamente incorporada à estrutura do Poder Judiciário, passando a ser reconhecida como ramo especializado da função jurisdicional, com competência para dirimir conflitos oriundos das relações de trabalho. No entanto, foi somente com a promulgação da Constituição de 1988 que essa justiça especializada sofreu uma significativa ampliação de sua competência material, consolidando-se como verdadeira “justiça social”.
Esse novo marco constitucional ampliou seu escopo de atuação para além das relações de emprego estritas, passando a abranger outras formas de relação laboral e matérias conexas, reafirmando o papel da Justiça do Trabalho como instrumento de proteção da dignidade do trabalhador e de efetivação dos direitos sociais fundamentais.
De acordo com o doutrinador Leone Pereira, a competência material desta Justiça, ampliada pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, fortificou três princípios básicos que a sustentam:
1º) princípio da competência original ou específica: significa que a Justiça do Trabalho detém competência material para processar e julgar ações oriundas da relação de trabalho;
2º) princípio da competência derivada ou decorrente: refere-se à competência material da Justiça do Trabalho para processar e julgar outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho;
3º) princípio da competência executória: objetivamente, significa que a Justiça do Trabalho tem competência material para processar e julgar a execução, de ofício, das contribuições sociais decorrentes das decisões condenatórias e homologatórias de acordo dos juízes e tribunais do trabalho em relação às parcelas trabalhistas de natureza salarial, que são aquelas que integram o conceito previdenciário de salário de contribuição.[1]
Já no que se refere às concepções processuais, Leone Pereira acrescenta que o Processo de Direito do Trabalho não é regido apenas por princípios constitucionais processuais e princípios do direito de processo civil. Para ele, o Processo do Trabalho possui princípios típicos e inerentes que caracterizam a autonomia dessa Justiça Especializada, quais sejam: “princípio da simplicidade, princípio da informalidade, princípio do jus postulandi, princípio da oralidade, princípio da subsidiariedade, princípio da celeridade”, diferenciando-o de qualquer outro processo da justiça brasileira.[2]
Recentemente, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) dirigiram duras críticas ao Tribunal Superior do Trabalho (TST), acusando seus magistrados de supostamente descumprirem decisões vinculantes proferidas pela Suprema Corte.
Contudo, ao contrário do que ocorreu em julgamentos paradigmáticos como o do reconhecimento da união estável homoafetiva e da descriminalização do aborto em casos de anencefalia — em que o STF observou e até se apoiou nas decisões proferidas pelas instâncias inferiores —, no tema da terceirização, a Corte Constitucional adotou postura distinta. Nesse caso, ao invés de apenas reafirmar ou consolidar entendimentos previamente debatidos, o Supremo ampliou significativamente a interpretação da matéria, incluindo em seu alcance situações que sequer haviam sido objeto de deliberação específica, como é o caso da pejotização e da uberização das relações de trabalho.
Tal movimento gerou natural tensão entre as instâncias superiores da Justiça, uma vez que o TST, na condição de órgão especializado e com competência constitucional para a uniformização da jurisprudência trabalhista, vinha adotando posicionamentos fundados na proteção da parte hipossuficiente e na preservação da dignidade do trabalho humano — valores igualmente resguardados pela Constituição de 1988.
Ao julgar matéria de natureza trabalhista, o Supremo Tribunal Federal ultrapassou os limites de sua competência constitucional ao desconsiderar, sem a devida fundamentação, os precedentes qualificados firmados pelo Tribunal Superior do Trabalho. A decisão foi proferida de forma ampliativa, incorporando entendimentos que não haviam sido previamente debatidos ou consolidados no âmbito da Justiça especializada.
A lógica do sistema de precedentes, sobretudo após o advento do Código de Processo Civil de 2015, impõe não apenas a vinculação hierárquica, mas também a construção dialógica e cooperativa entre os diversos órgãos jurisdicionais. A uniformização da jurisprudência não deve ser imposta de forma vertical e unilateral. Pelo contrário, exige-se respeito ao papel técnico dos tribunais especializados e consideração pelos entendimentos consolidados nas instâncias inferiores, de modo a garantir coerência, segurança jurídica e legitimidade institucional na formação dos precedentes.
No caso da terceirização, observou-se que os processos passaram a ser julgados com aplicação automática e rígida do precedente firmado pelo STF, muitas vezes sem a devida análise aprofundada do mérito e das particularidades de cada demanda, mesmo com explícitas conclusões no sentido do reconhecimento do vínculo pelos tribunais regionais competentes, com acórdãos referendados pelo TST.
Diante de casos que, sob sua ótica técnica, apresentam elementos fáticos e jurídicos distintos daqueles já decididos pelo STF, o TST tem legitimidade para exercer sua função interpretativa, realizando o distinguishing e decidindo de forma adequada às peculiaridades da demanda concreta.
Foi exatamente o que ocorreu no julgamento de uma ação trabalhista em que se reconheceu, com base em prova robusta, a existência de vínculo de emprego entre um motoboy e uma pizzaria, nos termos do artigo 3º da CLT. A contratação havia se dado de forma informal, diretamente com a pessoa física do trabalhador, sem qualquer elemento de terceirização ou pejotização. Ainda assim, a empresa acionou o STF via reclamação constitucional, que, em decisão monocrática do ministro André Mendonça, foi acolhida, desconsiderando por completo os fatos incontroversos reconhecidos pelas instâncias trabalhistas e atribuindo prevalência a um suposto contrato civil sem existência formal (Reclamação nº 69.240, Rel. Min. André Mendonça, julgado em 3/9/2024, publicado em 4/9/2024).
Tal episódio ilustra com clareza os riscos de uma aplicação rígida e acrítica dos precedentes, em descompasso com a lógica do sistema cooperativo e qualificado de formação jurisprudencial previsto no CPC/2015, que exige diálogo institucional e respeito à especialização técnica das instâncias inferiores.
Ocorre que os princípios orientadores adotados pelo STF, em matéria trabalhista, tendem a ser mais restritivos e abstratos do que aqueles consagrados pela jurisprudência consolidada do TST. Mais que isso, a Corte Constitucional não detém a vivência prática nem a especialização necessária para a interpretação sistemática e sensível das normas que regem o Direito do Trabalho.
Na prática, verifica-se que o STF tem proferido decisões pautadas em uma leitura rígida, muitas vezes descolada das dinâmicas sociais concretas e insensível aos impactos que seus entendimentos produzem sobre os trabalhadores e sobre o equilíbrio das relações laborais. Trata-se de uma postura que, ao privilegiar a formalidade jurídica em detrimento da realidade fática e da função social do Direito do Trabalho, compromete a efetividade dos direitos fundamentais sociais assegurados pela Constituição de 1988.
É inegável que a Justiça do Trabalho, por sua especialização e proximidade com a realidade das relações laborais, está melhor equipada para proferir decisões que considerem não apenas os aspectos jurídicos, mas também os elementos sociológicos e práticos envolvidos em cada lide.
No entanto, o atual modelo de precedentes tem favorecido uma aplicação mecânica e descontextualizada de teses, desestimulando a análise aprofundada dos fatos — justamente a principal característica da atuação da magistratura trabalhista. Em matérias como terceirização, pejotização ou uberização, é imprescindível que o juiz examine detidamente a prova dos autos para avaliar se o caso concreto realmente se subsume à tese fixada pelo STF, ou se demanda solução distinta, à luz de suas especificidades. A fidelidade ao sistema de precedentes não pode suprimir a autonomia interpretativa necessária à realização da justiça no caso concreto.
Nesse sentido, em nota técnica sobre pejotização direcionada ao Senado Federal, a ANPT, a ANAMATRA e a ABRAT, estabeleceram que “A aferição da relação de emprego se faz em conformidade com o princípio da primazia da realidade”. Se essa análise detida não for realizada, e os magistrados se limitarem à aplicação mecânica do precedente sobre terceirização, o julgamento deixará de considerar as peculiaridades do caso concreto, comprometendo não apenas a efetividade da justiça, mas violando frontalmente o princípio da primazia da análise do mérito — pilar essencial do devido processo legal e da tutela jurisdicional plena. Em última instância, corre-se o risco de transformar o sistema de precedentes em um instrumento de cegueira institucional, incapaz de distinguir o justo no caso concreto.
[1] PEREIRA, Leone. Manual de Processo do Trabalho. Ed. 4ª. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 205
[2] PEREIRA, Leone. Manual de Processo do Trabalho. Ed. 4ª. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 71
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