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AS ESQUECIDAS ONDAS MODULATÓRIAS DOS PRECEDENTES INTERPRETATIVOS – REFLEXÕES SOBRE O PRECEDENTE FORMADO NA ADC 16

  • Gabriela Fonseca de Melo
  • há 6 horas
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Gabriela Fonseca de Melo

Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Pesquisa (IDP); Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Mackenzie de Brasília; Pós-graduada em Direito Sistêmico pela Faculdade Innovare e Hellinger Schule. Graduada em Direito – UDF Centro Universitário; Servidora Pública no Tribunal Superior do Trabalho.

 


As decisões interpretativas proferidas pelo Supremo, em sede de controle de constitucionalidade, devem ostentar qualidade de precedente e, como tal, possuem vocação para produzir efeitos tanto retroativos como prospectivos. Vale dizer: a criação de norma-precedente aplica-se aos casos passados e futuros. Do mesmo modo, é inerente a uma corte de precedentes exercer a conveniência modulatória, limitando esses mesmos efeitos quando necessário.

 

Há situações a exigirem limitação na produção de efeitos, quando se torna necessário realizar a modulação de alcance e temporal (art. 927, § 3º, CPC). Elas são resguardadas da incidência da nova regra criada pelo Poder Judiciário, a fim de preservar a confiança daqueles que se conduziram e se planejaram a partir da antiga regra interpretativa. Porém, há alguns critérios e condições a serem preenchidos para que se realize a modulação.

 

Marinoni, ao analisar a decisão proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, no caso Chevron Oil Co. v. Huson (1971)[1], percebeu que foram estabelecidos três critérios levados em conta para oportunizar a outorga de efeitos prospectivos: “i) se o precedente estabeleceu novo princípio de direito ao revogar precedente [overruling] que merecia confiança ou a decidir uma questão pela primeira vez [estabelece-se uma regra que antes não existia]; ii) se à luz dos propósitos e efeitos do novo precedente, a eficácia retroativa os retardariam ou promoveriam; e iii) a extensão da iniquidade imposta pela eficácia retroativa, especialmente a injustiça ou o prejuízo que será causado pelos efeitos retroativos”[2].

 

O primeiro critério relaciona-se diretamente com a segurança jurídica e com a confiança legítima depositada no precedente que foi revogado. Aplicar a nova regra a fatos passados pode gerar prejuízos, uma vez que as pessoas não tinham como prever o novo entendimento e organizaram suas condutas e planejamentos com base na orientação anterior. Há uma quebra na expectativa de que aquela orientação iria manter-se, algo que ocorre sobretudo quando essa orientação era sólida e a mudança acontece de forma abrupta.

 

O segundo critério sugere uma reflexão do tribunal: aplicar para trás a nova regra melhora ou piora os efeitos que se pretende alcançar com ela? Ou seja, é preciso avaliar se a retroatividade atrapalha, gerando distorções ou resultados indesejados, ou favorece os objetivos da nova decisão. A modulação realizada no julgamento do RE 559.943 (STF) representa exemplo emblemático desse segundo critério[3].

 

O terceiro critério vai ao encontro de avaliar o grau de prejuízo ou injustiça que a retroatividade causaria. Há de se indagar: aplicar a nova regra decisória para fatos passados causaria injustiça, surpresa jurídica ou prejuízo significativo para pessoas que confiaram na regra antiga? Quebraria expectativas legítimas? Prejudicaria quem seguiu confiante e de boa-fé a antiga orientação vigente na época? Imporia um peso desproporcional a alguma das partes?

 

Acrescentem-se dois critérios relevantes a indicar pela conveniência constitucional de modulação de efeitos: i) se a mudança de regra ocorrer nos “ambientes decisionais rígidos ou duros”[4], como o direito penal e tributário, pois nesses ramos vigora, de forma acentuada, o princípio da legalidade estrita: as normas são mais definidas, as hipóteses de incidência mais rigorosas, e há pouca ou nenhuma margem para criação judicial de novos direitos ou desvios interpretativos criativos; ii) casos em que o Estado está envolvido, direta ou indiretamente, e a nova posição adotada prejudique o particular[5].

 

Alerte-se para o fato de que o órgão julgador que decide em modificar o entendimento anterior é quem detém competência para exercer o juízo de conveniência constitucional modulatória e o momento é exatamente o da alteração da orientação antes consolidada[6]. Se a corte forma um precedente – seja com novo entendimento até então inexistente, seja mediante a alteração do antigo (overruling) – e não se manifesta justificadamente sobre a modulação de efeitos (de alcance ou temporais), incorre em completa omissão.

 

A corte deve necessariamente pronunciar-se acerca da regulamentação de efeitos e sobre eventual decisão de não os modular, apresentando fundamentos específicos e detalhados capazes de “dar racionalidade à modulação, especialmente porque a Corte está a exercer uma função de law-making, ou seja, uma função que se assemelha à do legislador”[7]. Trata-se de um dever da corte de prestar jurisdição de forma plena e de um direito de as partes compreenderem exatamente a extensão da decisão, de modo a poderem orientar a sua conduta diante das consequências jurídicas advindas dela.

 

Em 2011, o STF, ao analisar a matéria na ADC 16, declarou a constitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei 8.666/1993[8], que prevê a exclusão da responsabilidade da Administração Pública pelo pagamento de encargos trabalhistas. Por considerar um dispositivo lacunoso, o Tribunal firmou entendimento complementar segundo o qual essa responsabilidade apenas é excluída quando comprovada a ausência de culpa quanto ao seu dever de fiscalizar o contrato licitatório-trabalhista. Isso porque estão em jogo os princípios e deveres inerentes à Administração Pública previstos na Constituição e na legislação, como os princípios da legalidade e da moralidade, bem como o dever de exigir e fiscalizar o cumprimento das condições de habilitação (jurídica, técnica, econômico-financeira e fiscal) durante toda a execução do contrato.

 

A tese consolidada no precedente formado encontra-se na ementa do acórdão, verbis

 

RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contratante. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art. 71, § 1º, da Lei federal n. 8.666/1993. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal n. 8.666, de 26 de junho de 1993, com redação dada pela Lei n. 9.032, de 1995[9]. (grifo nosso).

 

Com esse precedente, o Supremo alterou de forma profunda o entendimento que, durante muitos anos, se encontrava consolidado na jurisprudência trabalhista. Até então, a orientação prevista no item IV da Súmula 331 do TST – e aplicada de forma uniforme pelos órgãos e tribunais trabalhistas – estabelecia que, caso a empresa contratada (prestadora de serviços) deixasse de pagar as verbas trabalhistas dos empregados terceirizados, a responsabilidade subsidiária recaía automaticamente sobre a contratante (Administração Pública). Então, bastava o não pagamento dos créditos trabalhistas pelo prestador de serviços para que o ente público fosse considerado responsável, mesmo sem averiguação de prova quanto à sua conduta fiscalizatória. 

 

No precedente em análise, não houve modulação de efeitos. Diante disso, qual foi a estratégia adotada por alguns ministros do Tribunal Superior do Trabalho para lidar com os processos em trâmite que seriam impactados pela nova orientação firmada pelo Supremo?

 

Com a mudança jurisprudencial, passou a ser necessário que o acórdão regional apresentasse prova concreta da culpa fiscalizatória da Administração Pública. Contudo, tal exigência não constava nos processos que já tramitavam no TST, pois todos estavam submetidos ao entendimento anterior, no qual não se demandava tal demonstração específica. Nesse cenário, encontravam-se empregados terceirizados que nutriam legítima expectativa de receber as verbas trabalhistas devidas – se não da empresa contratada, ao menos da Administração contratante, responsável subsidiariamente segundo a regra então vigente.

 

O problema surge quando, ao analisar um acórdão regional com fundamentação genérica, sem a demonstração da culpa concreta, o relator se vê obrigado a afastar a responsabilidade da Administração Pública. Com isso, o trabalhador terceirizado deixa de receber seus créditos: não os obtém da empresa prestadora de serviços – que, em muitos casos, desaparece ou não possui recursos – e tampouco do ente público tomador, que efetivamente se beneficiou da prestação laboral.

 

Sensíveis a essa situação, alguns ministros passaram a determinar, de ofício, o retorno dos autos para que a corte de origem reapreciasse a matéria à luz da nova orientação fixada pelo Supremo no julgamento da ADC 16. Contudo, a SBDI-1, na sessão de julgamento do dia 17/12/2020, em sua composição plena, julgou o processo E-RR-273340-15.2005.5.02.0041[10], por maioria de 11 votos a 3 – vencidos Ministros José Roberto Freire Pimenta, Aloysio Corrêa da Veiga e Augusto César Leite de Carvalho –, firmou o entendimento de que não cabe determinar o retorno dos autos ao TRT para que este analise o processo a partir da aferição da culpa no caso concreto. Definiu-se, então, que uma vez que não há no acórdão regional prova de culpa concreta, não deve incidir a responsabilidade subsidiária ao ente público.

 

Na verdade, o que parte dos ministros do TST pretendia era oferecer solução a uma questão sensível. Cientes de que a omissão do Supremo quanto à modulação dos efeitos poderia gerar prejuízo aos trabalhadores terceirizados – que tinham a legítima expectativa de receber as verbas não pagas pela empresa contratante –, decidiram utilizar, de forma estratégica, o poder de determinar de ofício o retorno dos autos, a fim de que fosse proferida nova decisão à luz do novel entendimento adotado pelo Supremo, cuja jurisdição constitucional, em princípio, detém a última palavra.

 

Nesse caso específico, o melhor caminho a ser percorrido pela Corte Suprema, a fim resguardar a segurança jurídica e evitar a ruptura da confiança depositada na orientação interpretativa anterior, seria aplicar, de forma devidamente justificada, o pure prospective overruling, isto é, “limitação retroativa total”, que “não permite que o novo precedente incida nem mesmo sob o caso em julgamento”. Assim, a nova regra jurídica não se aplicaria “a nenhum fato antes ocorrido e, portanto, a nenhum caso anterior sob julgamento ou pendente”[11].

 

Portanto, um caso como esse exige reflexão, deliberação e justificativa – seja para modular, seja para não modular –, pois está-se retirando do mundo jurídico uma orientação interpretativa que vigorou durante determinado período e em certo contexto, para ser substituída por outra completamente distinta e que, em vez de colmatar as posições jurídicas existentes, acaba por impactar justamente o particular mais vulnerável da relação triangular estabelecida com a pessoa jurídica contratada e com o Estado contratante.



[1] Chevron Oil Co. v. Huson, 404 U.S. 97 (1971).

[2] MARINONI, Luiz Guilherme. Modulação de efeitos – entre a decisão de inconstitucionalidade e os precedentes. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2025, p. 207.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Tribunal Pleno). Recurso Extraordinário 559.943/RS. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. 12 de junho de 2008. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2549236. No caso do RE 559.943, o STF declarou a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 5.º do Decreto-Lei n.º 1.569/77 e dos arts. 45 e 46 da Lei n.º 8.212/91, que alargavam o prazo para a constituição de créditos tributários previdenciários. A desconsideração retroativa desses dispositivos permitiria que todos os contribuintes buscassem a repetição de indébito de valores recolhidos com base na legislação invalidada, inclusive em situações já estabilizadas no tempo. O voto do Ministro Gilmar Mendes evidencia essa preocupação ao afirmar existir “repercussão e insegurança jurídica” caso a decisão operasse efeitos retroativos plenos. Como consequência, o Tribunal concluiu que a retroatividade integral geraria distorções relevantes, tais como: 1) profunda instabilidade fiscal, com impacto direto no financiamento da seguridade social; 2) abertura indiscriminada para pedidos de restituição, inclusive em situações já consolidadas; 3) quebra da confiança legítima, uma vez que os contribuintes e o Estado atuaram durante anos sob a presunção de validade da norma; 4) desarranjo do sistema tributário, pela revisão de atos arrecadatórios já estabilizados. Assim, o Tribunal decidiu modular os efeitos ex nunc, permitindo repetição de indébito apenas quando a ação tivesse sido ajuizada antes da conclusão do julgamento. Para todos os demais casos, os valores pagos no passado permaneceram válidos. Verifica-se que o STF aplicou rigorosamente o segundo critério de modulação: evitou a retroatividade, porque ela agravaria — e não mitigaria — os efeitos negativos da mudança jurisprudencial, comprometendo a segurança jurídica, o interesse fiscal e a confiança legítima na atuação estatal.

[4] ALVIM, Teresa Arruda; MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Modulação: momento adequado, competência, critérios à luz de exemplos da jurisprudência. Suprema. v. 1, n. 1, a21, mar.-mai. 2021, p. 188.

[5] ALVIM, Teresa Arruda; MONNERAT, Fábio Victor da Fonte, op. cit., p. 188.

[6] ALVIM, Teresa Arruda; MONNERAT, Fábio Victor da Fonte, op. cit., p. 194-201. Na mesma linha de entendimento:  CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudanças e transições de posições processuais estáveis. 3 ed. Salvador: JusPodivm, 2019; JOBIM, Marco Félix; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Súmula, jurisprudência e precedente: da distinção à superação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2021.

[7] MARINONI, Luiz Guilherme, op. cit., p. 230.

[8] Art. 71.  O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato. § 1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos estabelecidos neste artigo, não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis.

A Lei 14.133/2021 revogou a Lei 8.666/1993 e trouxe nova disposição legal sobre a questão: Art. 121. Somente o contratado será responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.§ 1º A inadimplência do contratado em relação aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transferirá à Administração a responsabilidade pelo seu pagamento e não poderá onerar o objeto do contrato nem restringir a regularização e o uso das obras e das edificações, inclusive perante o registro de imóveis, ressalvada a hipótese prevista no § 2º deste artigo.

[9] STF-ADC 16/DF, Ministro Relator Cezar Peluso, Tribunal Pleno, DJE de 9/9/2011. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=627165. Acesso em: 08 dez. 2025.

[10] E-RR-273340-15.2005.5.02.0041 Data de Julgamento: 17/12/2020, Relator Ministro: João Batista Brito Pereira, Subseção I Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: DEJT 29/01/2021.

[11] MARINONI, Luiz Guilherme, op. cit., p. 228.

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