TEMA 1.273/STJ: O MANDADO DE SEGURANÇA E AS OBRIGAÇÕES TRIBUTÁRIAS DE TRATO SUCESSIVO
- Isabella Flügel Malvar
- 28 de out.
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Isabella Flügel Paschoal Malvar
Mestranda em Direito Tributário (IDP). LLM em Direito Tributário e Contabilidade
Tributária (Ibmec). Advogada. Sócia do escritório Caputo Bastos e Serra.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu recentemente o julgamento do Tema 1.273 dos recursos repetitivos, que tratou sobre o prazo decadencial para a impetração de mandado de segurança cujo objeto seja obrigação tributária de natureza sucessiva.
Na sessão de 10 de setembro de 2025, a 1ª Seção do STJ fixou a seguinte tese:
O prazo decadencial do art. 23 da Lei 12.016/2009 não se aplica ao mandado de segurança cuja causa de pedir seja a impugnação de lei ou ato normativo que interfira em obrigações tributárias sucessivas, dado o caráter preventivo da impetração decorrente da ameaça atual, objetiva e permanente de aplicação da norma impugnada (REsp n. 2.103.305/MG, Relator Ministro Paulo Sérgio Domingues, DJ 03/10/2025)
A definição é relevante, pois ultrapassa a mera discussão processual e alcança o núcleo da reflexão sobre o nascimento das obrigações tributárias, em especial, as de natureza sucessiva, e o caráter preventivo de mandados de segurança impetrados no âmbito dessas obrigações.
As chamadas obrigações de “trato sucessivo” são aquelas que não ocorrem uma única vez, mas se renovam periodicamente, uma vez que, a depender do tributo ou das atividades desempenhadas pelo contribuinte, o fato gerador ocorrerá de maneira recorrente. São alguns exemplos de obrigações de natureza sucessiva as contribuições PIS e Cofins, que incidem com recorrência mensal ou trimestral, e as contribuições previdenciárias, cobradas mensalmente no fechamento das folhas de pagamento.
O conceito de obrigações tributárias de trato sucessivo foi bem definido por Teori Zavascki:
[...] nascida de fatos geradores instantâneos que, todavia, se repetem no tempo de maneira uniforme e continuada. Os exemplos mais comuns vêm do campo tributário: a obrigação do comerciante de pagar imposto sobre a circulação de mercadorias, ou do empresário de recolher a contribuição para a seguridade social sobre a folha de salário ou sobre o faturamento. Na verdade, as relações sucessivas compõem-se de uma série de relações instantâneas homogêneas, que, pela sua reiteração e homogeneidade, podem receber tratamento jurídico conjunto ou tutela jurisdicional coletiva. [...][1]
A questão decidida recentemente pelo STJ quando do julgamento do Tema 1.273 solucionou problemática que vai muito além da discussão sobre a contagem do prazo decadencial, pois delimita o momento do nascimento da obrigação de trato sucessivo, que não surge com a publicação da norma, mas com a ocorrência do fato gerador, que se renova periodicamente.
Trata-se de diferenciação de suma importância para a correta interpretação de obrigações tributárias: de um lado, tem-se a hipótese de incidência do tributo, definida como a previsão legal da conduta que ensejará a obrigação tributária, e de outro, o fato gerador (ou fato imponível), que é a concretização no mundo material da hipótese abstrata prevista em lei.
Sobre isso, assim elucida Geraldo Ataliba:
O fato imponível é, pois, um fato jurígeno (fato juridicamente relevante) a que a lei atribui a consequência de terminar o surgimento da obrigação tributária concreta. Em termos kelsenianos: é um suposto a que a lei imputa a consequência de causar o nascimento do vínculo obrigacional tributário[2]
No mesmo sentido, porém adotando terminologias distintas, Paulo de Barros Carvalho esclarece que:
O antecedente das normas representará, invariavelmente: 1) uma previsão hipotética, relacionando as notas que o acontecimento social há de ter, para ser considerado fato jurídico; ou 2) a realização efetiva e concreta de um sucesso que, por ser relatado em linguagem própria, passa a configurar o fato na sua feição enunciativa peculiar. Lá, na norma geral e abstrata, um enunciado conotativo; aqui, na norma individual e concreta, um enunciado denotativo. Ambos com a prescritividade inerente à linguagem jurídica.[3]
Portanto, a previsão legal da hipótese de incidência nada mais é do que um antecedente hipotético, que apenas se manifestará caso aquela conduta prevista em lei concretize-se em fato gerador capaz de fazer nascer a obrigação tributária.
O posicionamento até então seguido pela Segunda Turma do STJ quanto à matéria ia de encontro a essa orientação. O colegiado se valia da teoria do “ato jurídico único” para aplicar o prazo decadencial ao mandado de segurança impetrado contra obrigações tributárias de trato sucessivo, adotando como marco inicial para a contagem do prazo decadencial, a data da publicação da norma que instituiu o tributo. O posicionamento seguia a seguinte lógica:
[...] a obrigação tributária surge com a publicação da norma que a institui, constituindo ali ato único de efeitos concretos na esfera patrimonial do contribuinte, e sua cobrança periódica não tem o condão de transformá-la em obrigação de trato sucessivo para fins de impetração de mandado de segurança [...] (AgInt no REsp n. 1.627.784/GO, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 27/8/2019, DJe de 6/9/2019.)
Ao julgar o Tema 1.273 dos recursos repetitivos, a 1ª Seção do STJ afastou esse entendimento e definiu não se aplicar o prazo decadencial aos mandados de segurança impetrados para questionar obrigações tributárias de natureza sucessiva. Segundo destacou o Relator, Ministro Paulo Sérgio Domingues, embora a publicação do ato normativo instituidor do tributo seja essencial, não é esse o fato gerador da obrigação tributária, que apenas será identificado caso a hipótese abstrata prevista em lei se concretize no mundo material.
Segundo essa orientação, a lei ou o ato normativo geral e abstrato constitui requisito necessário, mas são suficiente para o surgimento da obrigação tributária. A lei, em verdade, estabelece apenas a hipótese de incidência da norma (se "x", então "y"), mas a obrigação tributária não prescinde, para a sua constituição ou nascimento, que o fato ou ato idealizado pelo legislador como desencadeador da aplicação da norma efetivamente ocorra. Dessa forma, não se poderia dizer que a obrigação tributária surge com a edição da norma geral e abstrata, e tampouco que o prazo decadencial para a impetração do mandado de segurança incida e deva ser computado a partir da edição do ato normativo que estabeleceu a hipótese de incidência tributária. (REsp n. 2.103.305/MG, Relator Ministro Paulo Sérgio Domingues, DJE 03/10/2025, p. 18)
Partindo das premissas de que a obrigação tributária nasce a partir da ocorrência do fato gerador – e não com a publicação da norma – e de que as relações tributárias de trato continuado se renovam periodicamente, tem-se que a ameaça de lesão ao direito do contribuinte é permanente, pois o justo receio existirá enquanto houver a expectativa de surgimento da obrigação tributária. Nesse sentido:
De todo o exposto, a solução que me parece a mais convincente é a de que, nas obrigações tributárias sucessivas, a cada fato gerador ocorrido ou consumado sucede outro cuja ocorrência ou consumação é iminente, o que coloca o contribuinte em um estado de ameaça de lesão a direito não apenas atual e objetiva, mas também, demonstrando o caráter preventivo do mandado permanente de segurança pela presença constante do "justo receio". Nesse cenário, não há como se cogitar de aplicação do prazo decadencial do art. 23 da Lei 12.016/2009. (REsp n. 2.103.305/MG, Relator Ministro Paulo Sérgio Domingues, DJE 03/10/2025, p. 20)
Esse estado constante de ameaça ou justo receio a direito líquido e certo, identificado nas obrigações tributárias de trato sucessivo, implica na interpretação de que o mandado de segurança impetrado para a proteção do direito invocado tem natureza preventiva, e não repressiva – quando já consolidada a lesão ao direito –, a afastar a aplicação do prazo decadencial previsto no art. 23 da Lei 12.016/2009.
Isso porque o mandado de segurança repressivo, sujeito ao prazo decadencial, é cabível diante de uma efetiva lesão ao direito, que, em matéria tributária, ocorrerá com atos concretos de cobrança ou inscrição em dívida ativa. Por sua vez, o mandado de segurança preventivo terá lugar antes da exequibilidade do crédito tributário, quando ainda inexistente a lesão. Protege-se, portanto, a ameaça ou o justo receio de lesão.
Em matéria tributária geralmente não se cogita de ameaça, no sentido de um ato anunciador da prática lesiva ao direito do contribuinte. O justo receio decorre da própria existência de lei inconstitucional, ou de norma infralegal contrária à lei. Nestes casos há um estado de ameaça permanente, que tem início com o surgimento da situação de fato que enseja a incidência da lei, ou outra norma desprovida de validade jurídica, e vai até a prática efetiva da lesão, ou, em outras palavras, até a aplicação da norma inválida. Não se há de cogitar de decadência antes de consumada a lesão ao direito do contribuinte. E esta em regra somente acontece com o lançamento, ou, para ser mais exato, com a inscrição do crédito tributário como dívida ativa.[4]
O julgamento do Tema 1.273 pelo STJ consagra a interpretação de que, nas obrigações tributárias de trato sucessivo, o mandado de segurança possui caráter essencialmente preventivo, na medida em que expõem o contribuinte a um estado constante de ameaça ou justo receio de lesão.
Por fim, ao afirmar que as obrigações de trato sucessivo não nascem com a simples publicação da lei, mas com a ocorrência do fato gerador, a Corte reforça distinção essencial entre hipótese de incidência normativa e a efetiva materialização do fato gerador que constitui a obrigação tributária, e assegura ao contribuinte o direito de fazer uso do mandado de segurança para a proteção contra lesões que ainda não se consolidaram, afastando a aplicação do prazo decadencial do art. da Lei 12.016/2009.
[1] ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, 2ª Ed., p. 99.
[2] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária, 6ª Ed. 5ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 68.
[3] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário, 25ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 259
[4] MACHADO, Hugo de Brito. Mandado de Segurança em Matéria Tributária, 11ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2024, p. 83, 87-88.


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