MODULAÇÃO DOS EFEITOS: O JULGAMENTO DO TEMA 1.079/STJ E O CONCEITO DE JURISPRUDÊNCIA DOMINANTE
- Danúbia Souto
- há 5 dias
- 5 min de leitura

Danúbia Souto de Faria Costa
LL.M em Processo e Recursos nos Tribunais Superiores pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), especialista em Direito pelo Instituto dos Magistrados do Distrito Federal (IMAG) e LL.M em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) - em curso. Sócia do Castro Barros Advogados, head do contencioso estratégico em Tribunais Superiores.
A discussão sobre modulação de efeitos, há muito, deixou de ser um tema restrito à teoria do controle de constitucionalidade para ocupar posição central no cotidiano da jurisdição brasileira. Atualmente, a controvérsia ganhou especial relevo no Superior Tribunal de Justiça, em razão da pendência do julgamento, pela Corte Especial, dos embargos de divergência opostos no Tema 1.079, que afastou o limite de vinte salários mínimos para a base de cálculo das contribuições parafiscais destinadas ao chamado Sistema S.
O STJ modulou os efeitos do julgamento de mérito do tema repetitivo utilizando o seguinte parâmetro – proposto pela relatora ministra Regina Helena Costa:
"(...) Assim, proposta a superação do vigorante e específico quadro jurisprudencial sobre a matéria tratada (overruling), e, em reverência a estabilidade e à previsibilidade dos precedentes judiciais, impõe-se, em meu sentir, modular os efeitos do julgado tão-só com relação às empresas que ingressaram com ação judicial e/ou protocolaram pedidos administrativos até a data do início do presente julgamento, obtendo pronunciamento (judicial ou administrativo) favorável, restringindo-se a limitação da base de cálculo, porém, até a publicação do acórdão."[1]
Importa registrar que, por razões muito diversas, a verdade é que o critério adotado pelo STJ nessa modulação desagradou os dois lados do processo. No entanto, considerando a discussão objeto do presente ensaio, o foco ficará na discussão travada por meio dos embargos de divergência opostos após a rejeição dos aclaratatórios de ambas as partes.
No recurso, discute-se se a modulação de efeitos realizada pela Primeira Seção – que preservou, de forma temporalmente delimitada, as empresas beneficiadas por decisões favoráveis quanto ao limite de vinte salários mínimos na base de cálculo – poderia ter sido fundamentada em “alteração de jurisprudência dominante”, na forma do art. 927, § 3º, do CPC.
A Fazenda Nacional sustenta que não havia um quadro consolidado de precedentes apto a gerar confiança legítima, ao passo que os contribuintes defendem – na esteira do que consignou a relatora no acórdão – que o histórico de decisões, inclusive monocráticas, reiteradas, é suficiente para criar expectativa de estabilidade interpretativa.
Esse debate contemporâneo revela que a modulação de efeitos passou a atuar como instrumento de gestão das transições jurisprudenciais, especialmente quando envolvem temas de grande impacto econômico e social, como é o caso do mencionado Tema.
A “jurisprudência dominante” no CPC de 2015 e sua integração ao sistema processual da modulação dos efeitos
Como visto, o CPC de 2015 superou a utilização da técnica de modulação dos efeitos como instrumento restrito à jurisdição constitucional concentrada para vincular, de modo explícito, sua aplicação no sistema de precedentes judiciais criado.
Por meio do art. 927, § 3º, base legal da modulação realizada no Tema 1.079, restou estabelecido que, “Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.”
Desse texto legal, pode-se dizer que o Código objetivou o problema da transição jurisprudencial ao estabelecer que, não é apenas a uniformização e a correção da interpretação da norma que importa, mas, também, como uma eventual mudança de posicionamento, realizada a partir dessa função uniformizadora dos tribunais superiores, deve repercutir no tempo.
É justamente nesse ponto que a noção (ou a definição) de “jurisprudência dominante” adquire relevância, pois, especialmente quando há um padrão relativamente estável de decisões anteriores, parece fazer sentido falar em proteção da confiança e, portanto, em modulação.
No julgamento do Tema 1.079, defendeu-se que a dominância não exige uniformidade absoluta, mas sim a prevalência de determinada linha de entendimento na maioria dos julgamentos sobre a matéria, ainda que existam decisões em sentido contrário. Trata-se, como é possível interpretar, de um conceito de predominância, ou seja, o que importa é a direção majoritária das decisões, e não a supressão de toda divergência.
Além disso, ganhou força a compreensão de que a análise da dominância não pode ignorar o lugar ocupado pelas decisões monocráticas na dinâmica decisória contemporânea. O Regimento Interno do STJ autoriza o relator a decidir sozinho recursos quando houver entendimento já consolidado a respeito da matéria.
Desse modo, não se pode ignorar que séries de decisões monocráticas reiterando uma mesma orientação, especialmente quando emanadas de diferentes ministros e turmas, podem funcionar como indicador de estabilização interpretativa.
Os dois lados dessa moeda: os perigos da conceituação e da não conceituação do termo “jurisprudência dominante”
Do ponto de vista teórico, o esforço de delimitação do termo aproxima-se de uma concepção “tipológica” de conceitos jurídicos. Em vez de estabelecer um rol taxativo de requisitos formais – como número mínimo de acórdãos, necessidade de decisões colegiadas de todas as turmas ou exigência de unanimidade – a noção de jurisprudência dominante é construída a partir de um feixe de indícios: quantidade de precedentes, estabilidade temporal, ausência de decisões significativas em sentido contrário, grau de difusão do entendimento nas instâncias ordinárias etc. Nesse cenário, o intérprete em cada caso concreto deve verificar se há um “núcleo forte” de decisões apto a gerar confiança legítima nos destinatários da norma.
Essa leitura, pode-se dizer, dialoga com a própria opção do legislador ao preferir, na hipótese, utilizar o termo “dominante” a outros vocábulos mais rígidos, como “pacífica” ou “uniforme”. Ao fazê-lo, parece que o CPC reconheceu que a jurisprudência é, por natureza, um fenômeno dinâmico, no qual a estabilidade convive com doses inevitáveis de conflito e oscilação. Exigir consenso perfeito seria, na prática, impedir que o instituto da modulação atuasse em situações em que, de fato, já existem expectativas consolidadas no tecido social.
Por outro lado, a abertura conceitual também acarreta riscos. Se tudo pode ser considerado “dominante”, o requisito perde densidade normativa e a modulação passa a depender de avaliações casuísticas, potencialmente moldadas por considerações estritamente pragmáticas ou fiscais.
Essa tensão entre flexibilidade e segurança é precisamente o que se observa no debate travado nos embargos de divergência no Tema 1.079, no qual se contrapõem, de um lado, a defesa de um conceito mais frouxo de dominância – que admite a contagem de decisões monocráticas reiteradas – e, de outro, a exigência de um padrão mais duro, que reclamaria precedentes colegiados de ambas as turmas da Seção.
No entanto, o arcabouço atual parece convergir para a conclusão de que um conceito flexível – ainda que não totalmente aberto – de dominância é mais compatível com a realidade de formação da jurisprudência, marcada pelo peso das decisões monocráticas, pela sobrecarga dos tribunais superiores e pela centralidade dos mecanismos de julgamento de casos repetitivos. Exigir exclusivamente decisões colegiadas uníssonas para cravar a dominância jurisprudencial apta a autorizar modulação, seria ignorar essa realidade e, com isso, restringir de forma indevida o alcance do art. 927, § 3º do Código.
A análise tipológica, ainda que mais trabalhosa, aparenta oferecer resposta mais sensível às especificidades de cada controvérsia. Essa abordagem, aliás, não somente dialoga com a função que o referido dispositivo desempenha no sistema de precedentes, mas dá a modulação o merecido status de mecanismo de equilíbrio entre correção normativa e segurança jurídica, permitindo que o ordenamento avance na direção de interpretações mais adequadas, sem desconsiderar, no entanto, o passado legitimamente formado.
[1] trecho do Acórdão publicado no DJe de 2/5/2024


Comentários