A PROTEÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA EM SITUAÇÃO DE PANDEMIA NA JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL FEDERAL ALEMÃO
- Renata Cherubim
- há 5 dias
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Renata Cherubim
Doutora em Direito (Humboldt-Universität zu Berlin). Mestre em Direito (Humboldt-Universität zu Berlin). Bacharel em Direito (Universidade de Brasília). Membro do corpo de pesquisa e docente de Direito Constitucional, Direito Europeu, Direito Administrativo e Metodologia Jurídica da FOM Hochschule, Alemanha.
Durante a pandemia da COVID-19, o Tribunal Constitucional Federal alemão ocupou-se de caso relevante na concretização do direito fundamental à vida e à integridade física, garantido na Constituição alemã. Em 2020, associações de defesa de direitos de pessoas com deficiência e particulares impetraram reclamação constitucional (Verfassungsbeschwerde) perante o Tribunal, alegando uma omissão inconstitucional do Legislador. A ausência de normas jurídicas vinculantes para regular a alocação de recursos de terapia intensiva em situações de superlotação em hospitais gerava nos reclamantes o fundado receio de que, na prática, as decisões médicas pudessem ser pautadas por critérios discriminatórios. O temor era que, diante da necessidade de escolher a quem salvar, a preferência recaísse sobre pacientes com maior expectativa de vida geral, em detrimento daqueles com deficiências ou comorbidades.
No sistema constitucional alemão, os direitos fundamentais são tradicionalmente concebidos em sua dimensão negativa, como direitos de defesa (Abwehrrechte) do indivíduo contra intervenções do Estado.[1] Em regra, não conferem um direito subjetivo a uma prestação ou a uma legislação específica.[2] Contudo, a jurisprudência do Tribunal consolidou o entendimento de que, em certos casos, os direitos fundamentais geram um dever de proteção (Schutzpflicht) para o Estado, que o obriga a atuar para proteger o indivíduo contra violações perpetradas por terceiros. Em 2021,[3] ao decidir a reclamação constitucional sobre os direitos das pessoas portadoras de deficiência no contexto da pandemia, o Tribunal aplicou a doutrina do dever de proteção, enfatizando o dever do Legislador de agir. Recentemente, numa decisão de setembro de 2025[4], a Corte voltou a analisar o tema, anulando lei federal adotada em resposta à sua ordem, mas por um fundamento estritamente formal, reforçando, contudo, a essência do dever de proteção.
Direitos fundamentais e sua tutela na Constituição alemã
A Constituição alemã (Grundgesetz) dedica seu primeiro capítulo (arts. 1° a 19) a um catálogo extenso de direitos fundamentais, que protegem a liberdade individual, em seus mais diversos aspectos, contra limitações oriundas do Estado. Esses direitos vinculam diretamente os três Poderes do Estado (art. 1° n° 3), servindo como parâmetros de validade para os atos da Administração Pública, do Legislativo e do Judiciário. No entanto, a liberdade individual não é ilimitada. Com exceção da dignidade da pessoa humana, que é intangível (art. 1° n° 1), de um modo geral, os demais direitos podem ser restringidos ou regulamentados por lei. Tais restrições, contudo, devem observar requisitos estritos, como a exigência de reserva legal, a legitimidade do fim que pretende alcançar e obediência aos critérios de proporcionalidade.[5]
A Constituição alemã reforça a eficácia dos direitos fundamentais através de um instrumento de tutela jurisdicional à disposição do indivíduo. Trata-se da queixa ou reclamação constitucional (Verfassungsbeschwerde), remédio judicial que pode ser proposto pelo titular de direito fundamental diretamente perante o Tribunal Constitucional Federal ao se sentir lesado em um de seus direitos fundamentais por ato do poder público. Para admissibilidade da reclamação, é necessário, entre outros requisitos, que o reclamante demonstre a existência de um ato estatal que o prejudique diretamente.[6]
Lesão por omissão do Legislador e a doutrina do dever de proteção
A exigência de um ato estatal restritivo significa que, geralmente, uma mera omissão do Legislador não configura violação de direito fundamental. Esse entendimento se justifica pela primazia dos direitos fundamentais como escudos contra a interferência estatal.[7] Contudo, a jurisprudência da Corte Constitucional reconhece que os direitos fundamentais possuem também uma dimensão objetiva, impondo ao Estado, em certos casos, deveres de proteção (Schutzpflichten). Em situações específicas, o Estado tem a obrigação constitucional de agir para proteger o titular de direito fundamental contra ameaças provenientes de terceiros ou de contextos fáticos perigosos.
O direito à vida e à integridade física (art. 2° n° 2) é o exemplo mais proeminente. Dele não deriva apenas uma liberdade negativa contra ato letal estatal, mas também uma obrigação positiva de proteger e promover a vida. Um caso clássico na jurisprudência alemã diz respeito ao aborto, no qual o Tribunal entendeu haver dever do Estado de proteger a vida do nascituro no ventre materno, inclusive por meio da tutela penal. É importante notar, entretanto, que, mesmo quando o dever de proteção é reconhecido, o Legislador, enquanto órgão democraticamente legitimado, detém uma ampla margem de avalição para decidir sobre a melhor forma de cumprir essa obrigação.[8]
A decisão de 2021: dever de legislar para proteger pessoas com deficiência
Na decisão de 2021, o Tribunal concretizou esse dever do Estado de proteção para o contexto de pandemias, reforçado no caso pelo direito à não-discriminação previsto no art. 3° da Constituição. Ao analisar a reclamação constitucional das pessoas com deficiência, a Corte reconheceu que a ausência de regras vinculantes criava um risco real e iminente de discriminação. A mera existência de recomendações de associações médicas foi considerada insuficiente, pois tais diretrizes não possuem força de lei.
O Tribunal reconheceu que a margem de atuação do Legislador se esgota quando ele permanece completamente inativo diante de um perigo concreto de violação grave de direitos fundamentais. A vulnerabilidade específica das pessoas com deficiência em um cenário de escassez de recursos impunha ao Estado a obrigação de agir. A Corte determinou que a alocação de recursos de terapia intensiva deveria se basear exclusivamente em critérios médicos objetivos e de curto prazo, como probabilidade imediata de sobrevivência do paciente. Por outro lado, critérios que, direta ou indiretamente, utilizassem a deficiência, a idade ou juízos de valor sobre a vida foram considerados inconstitucionais. O resultado foi uma ordem explícita para que o Legislador criasse, com urgência, regras vinculantes para proteger eficazmente pessoas com deficiência contra a discriminação nas situações descritas.
A decisão de 2025: anulação formal e reafirmação material do dever de proteção
Em cumprimento à ordem judicial, o Legislador federal alterou a Lei de Proteção contra Infecções, introduzindo o § 5c, que proibia expressamente, entre outras hipóteses, a discriminação por deficiência e estabelecia o critério da “probabilidade atual e de curto prazo de sobrevivência” como único fator decisivo para a alocação de recursos pelo médico.
Contudo, a nova legislação foi imediatamente questionada perante o Tribunal, desta vez por médicos de emergências e de terapia intensiva, que alegaram uma violação de sua liberdade profissional (art. 12 n°. 1). Em decisão de setembro de 2025, o Tribunal acolheu a queixa e declarou o § 5c nulo, mas por fundamento puramente formal devido à incompetência legislativa da esfera federal para regular a matéria. A Corte entendeu que a regulação do exercício da profissão médica e da organização hospitalar, mesmo em contexto de pandemia, não se enquadra na competência federal para “combater doenças transmissíveis” (art. 74, n° 19). Tal competência se restringe a medidas de prevenção e contenção da doença em si, e não à gestão de suas consequências, como a escassez de recursos. A matéria, portanto, seria de competência dos estados.
Entretanto, é crucial entender o alcance desta segunda decisão. O Tribunal não reviu o mérito de sua decisão de 2021. Pelo contrário, a Corte reafirmou a existência da obrigação de legislar, apenas redirecionando a responsabilidade para o estado federado, ente federativo competente. A proteção continua sendo um imperativo constitucional, e sua implementação cabe aos parlamentos estaduais.
Conclusão
No direito alemão, os direitos fundamentais, embora concebidos primeiramente como liberdades negativas, podem gerar deveres positivos de proteção para o Estado, especialmente para tutelar grupos vulneráveis contra discriminações. A inércia legislativa diante de um risco concreto de discriminação é inconstitucional. A proteção à vida e à integridade física não pode ser deixada a critérios discricionários, exigindo uma ação positiva e juridicamente vinculante do poder público competente.
[1] Conf. HUFEN, Friedhelm. Staatsrecht II, Grundrechte. 11. ed. München: C.H. Beck, 2025, p. 53-54.
[2] Conf. HUFEN, Friedhelm. Staatsrecht II, p. 56.
[3] ALEMANHA. Tribunal Constitucional Federal. Decisão de 16 de dezembro de 2021, Processo 1 BvR 1541/20.
[4] ALEMANHA. Tribunal Constitucional Federal. Decisão de 23 de setembro de 2025, publicada em 4 de novembro de 2025, Processos 1 BvR 2284/23 e 1 BvR 2285/23.
[5] Conf. MANSSEN, Gerrit. Staatsrecht II, Grundrechte. 19. ed. München: C.H. Beck, 2023, p. 55 e ss.
[6] Conf. SACHS, Michael. Verfassungsprozessrecht. 4. ed. Tübingen: Mohr Siebeck, 2016, p. 154 e ss.
[7] Conf. HUFEN, Friedhelm. Staatsrecht II, p. 55-56.
[8] Conf. HUFEN, Friedhelm. Staatsrecht II, p. 222.


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