QUANDO O ALGORITMO DECIDE: OS DESAFIOS CONSTITUCIONAIS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO STJ
- Viviane Mundim
- 13 de jun.
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Viviane Ferreira Mundim
Doutoranda em Direito Constitucional (IDP). Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento (IDP), com menção honrosa de melhor dissertação de 2024 MBA em Direito e Tecnologia (USP). Especialista em Direito Civil, Processual Civil, Direito Público e Direito Constitucional (UNYLEYA BRASIL). Membra da Escola Brasileira de Atuação nos Tribunais Superiores (EBATS), do Amigas da Corte, da Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB/DF, do biênio 2025/2027, e da Comissão da Advocacia nos Tribunais Superiores OAB/DF, do biênio 2025/2027, do grupo de pesquisa "Direito Privado no Século XXI" e do grupo de pesquisa "Novos Rumos do Processo Civil", ambos do IDP. Autora. Advogada. Sócia fundadora da Ferreira Mundim Advogados & Associados, com atuação perante os Tribunais Superiores.
O avanço tecnológico tem provocado transformações profundas nas estruturas estatais, especialmente no Poder Judiciário, onde a inteligência artificial (IA) vem sendo incorporada com o objetivo de acelerar a tramitação processual, padronizar decisões e promover a racionalização de recursos. No contexto brasileiro, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se destacado como uma das Cortes que mais tem recorrido a soluções automatizadas, com iniciativas como os robôs Athos e Victor, responsáveis por triagens processuais e análise de precedentes.
Diante dessa realidade, é necessário refletir sobre os impactos constitucionais do uso de inteligência artificial no processo judicial, sobretudo quanto ao direito à fundamentação das decisões, à garantia do contraditório, à isonomia e à preservação do papel contra majoritário do Judiciário. O presente artigo propõe-se a examinar essa tensão entre eficiência tecnológica e garantias constitucionais, analisando o uso da IA no STJ a partir de referenciais normativos e práticos.
1. A inteligência artificial no STJ: panorama atual
Nos últimos anos, o STJ tem investido em ferramentas de inteligência artificial como forma de enfrentar o grande volume de processos — mais de 428 mil somente em 2023. Os sistemas automatizados contribuem para triagens, análise de admissibilidade e identificação de precedentes repetitivos, sem, contudo, substituir o julgamento humano.
A operacionalização da IA no STJ, entretanto, não é homogênea, mas multifacetada. Cada sistema desenvolvido atende a funções específicas:
Logos: criado para tratar as demandas repetitivas e de grandes litigantes, tem como objetivo utilizar o motor de inteligência artificial como insumo para diversas iniciativas de melhoria na qualidade e celeridade da prestação jurisdicional do STJ, aumentando o impacto das suas decisões em todas as esferas do Poder Judiciário. Assim, produz minutas padronizadas de decisões com base na jurisprudência da Corte. Embora automatizado, o conteúdo gerado serve apenas como base textual, podendo ser ajustado pelo magistrado (Processo administrativo: STJ n. 013895/2019).
Athos: criado para tratar as demandas repetitivas e de grandes litigantes, e tem como objetivo tornar, mais rápida e efetiva, a triagem e a identificação de processos que tratem matérias comuns. Assim, espera-se o aumento do número de afetações, a redução de processos recebidos no STJ, aumento de Recursos Representativos da Controvérsia (RRC) e de Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) advindos de tribunais parceiros e a uniformização da jurisprudência com a utilização dos precedentes qualificados (Processo administrativo: STJ n. 013998/2019).
e-Juris: é uma ferramenta de inteligência artificial utilizada pela Secretaria de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) para auxiliar na extração automatizada de referências legislativas e jurisprudenciais dos acórdãos. Além disso, o e-Juris identifica acórdãos principais e sucessivos relacionados a um mesmo tema jurídico, facilitando a fundamentação das decisões judiciais.
Sócrates 2.0: torna conhecidas as controvérsias das petições dos recursos especiais. Identifica as controvérsias idênticas ou com abrangência delimitada para análise e afetação à sistemática dos recursos repetitivos; identifica os casos com potencial de inadmissão para registro à Presidência (Processo administrativo: STJ n. 834/2019).
Assim, segundo Wichineski (2025, p. 8), “a inteligência artificial aplicada à triagem de recursos contribui significativamente para a diminuição do tempo de espera por decisões e melhora a uniformização da jurisprudência, além de otimizar os recursos humanos da Corte.”
Essas ferramentas não eliminam o papel humano, mas influenciam diretamente a atuação de assessores e magistrados, ao priorizar demandas e oferecer bases para a redação de votos. A experiência tem promovido ganhos de produtividade, mas também suscitado questionamentos quanto à autonomia decisória e à singularidade dos casos.
2. Eficiência e seus limites: fundamentos constitucionais da jurisdição
A Constituição Federal de 1988 consagra a duração razoável do processo como um direito fundamental (art. 5º, inciso LXXVIII), o que legitima iniciativas voltadas à racionalização do Judiciário. Contudo, esse princípio deve ser interpretado em conjunto com outras garantias processuais, como a motivação das decisões (art. 93, IX), o contraditório (art. 5º, LV) e o acesso à Justiça (art. 5º, XXXV).
O uso da inteligência artificial, ainda que com propósitos legítimos de celeridade, não pode comprometer a substância do ato jurisdicional. A decisão judicial não se resume à aplicação mecânica de precedentes ou à identificação automatizada de padrões, mas exige análise contextualizada, consideração das especificidades do caso e sensibilidade diante de direitos fundamentais em conflito.
Nesse sentido, é necessário manter a vigilância institucional sobre os critérios de funcionamento das ferramentas de IA assegurando transparência, auditabilidade e responsabilização. A ausência de clareza quanto aos algoritmos utilizados, aos dados de treinamento e aos parâmetros de decisão pode levar à opacidade decisória, afastando o controle democrático e dificultando o exercício do contraditório.
3. Desafios constitucionais e institucionais
Um dos principais desafios da incorporação da IA ao STJ reside na preservação da legitimidade das decisões judiciais em um sistema baseado na confiança pública. A automatização de etapas decisórias, mesmo que parciais, exige uma reflexão profunda sobre os limites da delegação tecnológica e sobre o papel humano no processo de julgamento.
Além disso, há o risco de reprodução de vieses presentes nos dados que alimentam os sistemas de inteligência artificial. A literatura especializada tem alertado para os perigos de discriminação algorítmica, falta de explicabilidade das decisões automatizadas e perpetuação de assimetrias processuais.
No plano institucional, é fundamental garantir a governança democrática da IA no Judiciário, com participação de múltiplos atores – magistrados, servidores, advogados, defensores, sociedade civil – na definição de parâmetros éticos e técnicos para o uso da tecnologia. A Resolução CNJ nº 332/2020, que trata da ética na IA aplicada ao Judiciário, é um marco importante, mas ainda insuficiente diante da complexidade do tema.
A utilização da inteligência artificial no STJ representa um avanço significativo na busca por eficiência processual e enfrentamento do congestionamento judicial. Ferramentas como Athos e Victor demonstram o potencial da tecnologia para racionalizar rotinas, promover padronização e identificar precedentes aplicáveis. No entanto, a adoção de tais instrumentos exige cautela, responsabilidade e controle institucional rigoroso.
É imprescindível assegurar que o uso da inteligência artificial não esvazie as garantias constitucionais do processo, como a motivação individualizada das decisões, o contraditório substancial e a imparcialidade judicial. A lógica da eficiência não pode se sobrepor à substância da função jurisdicional, que pressupõe julgamento humano, contextualizado e comprometido com a justiça do caso concreto.
A tecnologia deve ser entendida como um meio de apoio, e não como substituto do discernimento humano. Cabe ao STJ e às demais instituições do sistema de justiça construir uma cultura de governança da inteligência artificial, pautada pela transparência, pela participação democrática e pelo respeito aos direitos fundamentais. O desafio é encontrar o equilíbrio entre a inovação tecnológica e a preservação da legitimidade constitucional da jurisdição.
Mais do que uma simples escolha entre eficiência e garantias, a incorporação da IA ao Judiciário exige a construção de novos referenciais normativos e éticos, capazes de orientar o desenvolvimento tecnológico em conformidade com os valores constitucionais. A inteligência artificial, se bem regulada, pode ser aliada na construção de uma Justiça mais acessível, ágil e democrática.
COSTA, Juliana; NUNES, Pedro. A inteligência artificial no Judiciário brasileiro: promessas e riscos. Migalhas, São Paulo, 23 jun. 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/392577/a-inteligencia-artificial-no-judiciario-brasileiro. Acesso em: 21 maio 2025.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). STJ e Unesco promovem oficina sobre inteligência artificial e Estado de Direito. Brasília, 8 maio 2025. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/08052025-STJ-e-Unesco-promovem-oficina-sobre-inteligencia-artificial-e-Estado-de-Direito.aspx. Acesso em: 21 maio 2025.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). STJ lança novo motor de inteligência artificial generativa para aumentar eficiência na produção de decisões. Brasília, 11 fev. 2025. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 21 maio 2025.
WICHINESKI, Rocha. A utilização de modelos de inteligência artificial para a celeridade processual no STJ. São Paulo: Editora Roncarati, 2025. Disponível em: https://www.editoraroncarati.com.br/v2/phocadownload/wichineski_17042025.pdf. Acesso em: 21 maio 2025.
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