FILTRO DE RELEVÂNCIA NO STJ E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: ENTRE A RACIONALIZAÇÃO PROCESSUAL E OS LIMITES DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
- Viviane Mundim
- 16 de out.
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Viviane Ferreira Mundim
Doutoranda em Direito Constitucional pelo IDP, Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pelo IDP, Especialista em Direito Civil, Processual Civil, Direito Público e Direito Constitucional pela UNYLEYA BRASIL. Autora e advogada sócia fundadora da Ferreira Mundim Advogados & Associados, com atuação perante os Tribunais Superiores.
A Emenda Constitucional nº 125, de 14 de julho de 2022, introduziu no art. 105 da Constituição Federal o § 2º, criando o filtro de relevância para o recurso especial. Esse dispositivo exige que o recorrente demonstre a relevância das questões de direito federal infraconstitucional, salvo hipóteses legais específicas. A justificativa central foi a necessidade de racionalizar o acesso ao Superior Tribunal de Justiça, evitando a sobrecarga e reforçando sua função de corte de precedentes.
Contudo, a inovação abre espaço para discussões constitucionais: em que medida o filtro preserva o direito de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CF) e não se transforma em barreira excessiva? Além disso, surge o debate sobre a utilização de inteligência artificial (IA) na triagem processual, ampliando os desafios sobre transparência, fundamentação e legitimidade democrática.
O filtro de relevância: propósito e riscos
O texto constitucional passou a prever que, para a admissibilidade do recurso especial, cabe ao recorrente demonstrar a relevância da controvérsia jurídica de natureza infraconstitucional, observados os critérios que vierem a ser definidos em lei, ressalvadas as situações em que a própria Constituição dispensa essa exigência (BRASIL, 1988).
Para o ministro Luis Felipe Salomão, “quando se fala em filtro de relevância, estamos falando em segurança jurídica pelo viés do direito positivado” (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2023). Ele pondera, entretanto, que há uma “falta de cultura e prática” sobre o tema, o que exigirá adaptação institucional.
Durante o programa Entender Direito, os professores Luiz Rodrigues Wambier e Paulo Mendes explicaram que o filtro de relevância, apesar de suscitar críticas quanto à possibilidade de elitização do acesso ao STJ, contém salvaguardas importantes. Entre elas, destaca-se a presunção de relevância para causas cujo valor ultrapasse quinhentos salários-mínimos, hipótese em que o Tribunal não poderá afastar o exame da matéria. Essa previsão busca equilibrar a racionalização recursal com a garantia de que questões de maior impacto econômico ou social não sejam indevidamente excluídas da apreciação da Corte (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2022).
Essas manifestações revelam a dualidade que envolve o instituto: de um lado, o filtro de relevância é concebido como instrumento de racionalização do trabalho do STJ e de fortalecimento de sua função uniformizadora; de outro, persiste a apreensão de que sua aplicação possa, na prática, transformar-se em barreira excessiva ao acesso à jurisdição, comprometendo a efetividade da garantia constitucional de tutela judicial.
Em síntese, o filtro de relevância no recurso especial inaugura um novo paradigma para o STJ, ao mesmo tempo em que projeta desafios constitucionais de grande magnitude. Se, por um lado, busca-se assegurar maior racionalidade na atuação da Corte e garantir que sua energia jurisdicional seja destinada a questões efetivamente relevantes, por outro, é imprescindível que sua implementação não esvazie o direito de acesso à justiça. O equilíbrio entre eficiência institucional e preservação das garantias fundamentais será o verdadeiro critério de legitimidade desse instituto, que só se consolidará de forma justa se conseguir compatibilizar racionalização processual com a tutela efetiva dos direitos.
Inteligência artificial no STJ: possibilidades e cautelas
O STJ tem se posicionado de forma proativa na adoção de ferramentas de IA. Em entrevista ao Correio Braziliense, o presidente da Corte, ministro Herman Benjamin, destacou que a plataforma STJ Logos já foi utilizada mais de 90 mil vezes, permitindo maior segurança jurídica e celeridade: “A IA (…) vai contribuir para reduzir disparidades em sentenças de causas semelhantes e aumentar a segurança jurídica. Além disso, acelera os julgamentos, o que é fundamental para a efetividade dos direitos” (BENJAMIN, 2025).
O ministro também ressaltou em sua fala que o desafio é traduzir o raciocínio jurídico em comandos algorítmicos, sem perder a essência da decisão humana. Nesse sentido, reportagem da CNN Brasil confirmou que a IA no STJ já é usada para “produzir minutas, correlacionar argumentos e listar discordâncias em casos semelhantes”, com vistas à eficiência (CNN BRASIL, 2025).
Essas declarações, por sua vez, reforçam que a Corte enxerga a IA como apoio, mas não como substituição da atividade decisória, o que é essencial diante das garantias constitucionais.
Diante desse cenário, percebe-se que a incorporação da inteligência artificial ao cotidiano do STJ representa um passo importante rumo à modernização da justiça, mas não isento de cautelas. O discurso institucional revela clara intenção de utilizar a tecnologia como ferramenta de apoio, sem transferir-lhe a essência do ato jurisdicional. O verdadeiro desafio, portanto, será construir um modelo de governança algorítmica que assegure transparência, auditabilidade e respeito às garantias constitucionais, de modo que a inovação tecnológica não se converta em risco, mas em instrumento de fortalecimento da legitimidade democrática das decisões judiciais.
Racionalização e garantia constitucional em perspectiva de equilíbrio
O grande desafio do filtro de relevância está em encontrar um ponto de equilíbrio entre a busca por eficiência e a salvaguarda dos direitos fundamentais. Quando se cogita a utilização de mecanismos automatizados para a triagem de recursos, torna-se indispensável observar alguns parâmetros essenciais. A transparência e a possibilidade de auditoria devem estar asseguradas, de modo que os critérios algorítmicos sejam compreensíveis e passíveis de controle.
A exigência de motivação também não pode ser relativizada: ainda que a inteligência artificial ofereça apoio na análise preliminar, a decisão sobre a admissibilidade deve vir acompanhada de fundamentação adequada, em respeito ao art. 93, IX, da Constituição. Soma-se a isso a necessidade de prevenir qualquer forma de discriminação decorrente de vieses de dados e, por fim, a observância do princípio da proporcionalidade, a fim de que a filtragem não se converta em obstáculo desmedido ao acesso à jurisdição constitucional.
Nesse sentido, como já ressaltado em debates no STJ, a adoção de ferramentas tecnológicas deve ocorrer de forma combinada com a supervisão humana, garantindo que os algoritmos sejam auxiliares, e não substitutos, da atividade judicial (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2025).
Conclusão
Em última análise, o filtro de relevância no recurso especial inaugura uma etapa decisiva para o STJ. Se, de um lado, traduz a busca por racionalização e eficiência na gestão de processos, de outro, impõe ao sistema jurídico o dever de não esvaziar a essência do direito de acesso à jurisdição.
Nesse contexto, a inteligência artificial surge como um recurso inovador capaz de potencializar a atividade jurisdicional, mas sua legitimidade dependerá da forma como for incorporada: não como substituta da decisão humana, mas como ferramenta de apoio transparente, auditável e constantemente supervisionada.
A Corte, ao adotar essas tecnologias, tem a oportunidade de se tornar exemplo de governança algorítmica no âmbito do Judiciário, mostrando que é possível conciliar inovação tecnológica com respeito aos princípios constitucionais.
O desafio, contudo, está em não ceder à tentação da eficiência a qualquer custo, mas em construir um modelo que harmonize celeridade e legitimidade, modernização e garantias fundamentais. Somente assim o filtro de relevância deixará de ser visto como barreira e passará a ser reconhecido como instrumento de fortalecimento da função constitucional do STJ e da confiança da sociedade na justiça.
Referências
BENJAMIN, Herman. Presidente do STJ explica como uso de IA pode contribuir na eficiência com processos. Correio Braziliense, Brasília, 22 maio 2025. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2025/05/7155763-presidente-do-stj-explica-como-uso-de-ia-pode-contribuir-na-eficiencia-com-processos.html. Acesso em: 24 set. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 24 set. 2025.
CNN BRASIL. STJ lança inteligência artificial para ajudar a acelerar processos. CNN Brasil, Brasília, 09 abr. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/stj-lanca-inteligencia-artificial-para-ajudar-a-acelerar-processos/. Acesso em: 24 set. 2025.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Emenda que criou o filtro de relevância do recurso especial é tema do Entender Direito. Brasília, 27 set. 2022. Disponível em: Filtro da relevância é destaque no programa Entender Direito Acesso em: 24 set. 2025.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Podcast Rádio Decidendi: ministro Luis Felipe Salomão discute os impactos da relevância para o STJ. Brasília, 8 dez. 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/08122023-Podcast-Radio-Decidendi-ministro-Luis-Felipe-Salomao-discute-os-impactos-da-relevancia-para-o-STJ-.aspx. Acesso em: 24 set. 2025.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Novos ministros do STJ debatem gestão processual, uso de IA e fortalecimento de precedentes. Brasília, 9 set. 2025. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/09092025-Novos-ministros-do-STJ-debatem-gestao-processual--uso-de-IA-e-fortalecimento-de-precedentes.aspx. Acesso em: 24 set. 2025.


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