O PATRIARCALISMO E AS TOGAS
- Raquel Xavier Vieira Braga
- 23 de mai.
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Raquel Xavier Vieira Braga
Pós Doutoranda em Direito. Doutora em Ciências Sociais Aplicadas pelo UniCeub. Mestra em Direito pela UFRGS. Advogada em Brasília. Sócia do escritório De Jongh Martins Advogados.
Uma vez que o direito estatal está relacionado às condições psicológicas de um povo, a forma como a população enxerga e trata uns aos outros vai refletir na realização da justiça da coletividade.
Se o sistema é androcêntrico, a justiça também será. A história revela que a misoginia é estrutural. Esteve na base da formação da cultura jurídica e perdura até hoje.
A administração da justiça foi construída pelo sistema patriarcal. A participação da mulher no sistema de justiça era pela imagem alegórica ou em processos judiciais, como vítima ou acusada. A mulher não administrava a justiça, não julgava nem ensinava as leis, tampouco advogava.
O Direito é regido pelas regras da liturgia. Os trajes foram criados para os homens. A toga preta é larga e comprida. A vestimenta judicial é elemento central do rito. Mantém os atores do processo aquecidos. A temperatura tranquiliza. A ritualística exerce efeito protetor de transformar temporariamente a personalidade.
O traje é feito para o modelo masculino. Largura, extensão da manga, medidas de altura seguem o padrão customizado para este corpo. Se a mulher desejar uma toga que comporte o caimento adequado para seu corpo precisa recorrer à alfaiataria, serviço raramente sujeito a preços módicos.
A indumentária comunica e revela. Identificam-se os períodos históricos pelas roupas das pessoas. As roupas femininas revelam a condição da mulher nas sociedades ao logo dos tempos, assim como os adornos.
Quanto mais rígida a sociedade, mais severa a legislação e mais panos cobrem o corpo feminino. Lembra-se que a distinção entre os gêneros pela indumentária sofreu oscilações. Houve épocas em que pouco se distinguiam, mas na maior parte do tempo muito se diferenciavam (diferenciam até hoje), como foi o caso da proibição do uso de calças para as mulheres, rompida pela estilista francesa Coco Chanel (1883-1971).
O que se veste é capaz de revelar traços da personalidade. A roupa sinaliza seriedade, ousadia, condição financeira, classe social, sobriedade, atrevimento, muita ou pouca vaidade, entre outras identificações.
No Brasil, a moda ditou e dita o status feminino na sociedade. No Direito, em que as regras da liturgia possuem peso e significado consideráveis, o uso de uma toga apropriada marca distinções entre grupos dentro do sistema de justiça. As togas disponibilizadas pelos Tribunais para as advogadas realizarem sustentação oral não foi feita para seus corpos. Poucas causídicas possuem suas próprias becas.
A finalidade da toga de dar conforto, aquecimento e preparação para o ritual é substituída pela preocupação de não pisar em cima do tecido e correr o risco de tropeçar, dobrar as mangas para deixar as mãos livres e torcer para que os panos não atrapalhem a performance técnica que a carreira exige, notadamente quando se está diante do exercício da oratória.
Ainda que se ofereçam tamanhos, o pequeno masculino não condiz com o feminino. Entre tantos esforços para concretizar a igualdade substancial, as dificuldades enfrentadas pelas mulheres no que diz respeito ao uso das togas nos tribunais merecem atenção, diante da simbologia que materializa a permanência do androcentrismo na vestimenta.
As mulheres lutam para conquistarem seus direitos, abstratamente reconhecidos, em sua plena efetividade, batalham por espaços nos ambientes jurídicos, precisam de aceleradores históricos e, ainda, necessitam investir em suas próprias togas para vivenciar na pele a mesma familiaridade e aconchego recebidos pelos colegas advogados enquanto o modelo feminino não vem.
A espera de algo (ou alguém) que não se sabe se virá, nem quando, é trabalhada de maneira ímpar pelo dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett, em Esperando Godot. Os personagens permanecem na expectativa, contrária a todos os sinais, de que algo novo aconteça. As demonstrações da realidade de que o esperado não se concretizará são desconsideradas. O mergulho no imaginário revela o paradoxo de, na tentativa de preencher o vazio, cair em seu abismo.
Lembrando esta preciosa, complexa e profunda peça teatral, estaríamos esperando Godot em relação à disponibilização, material e simbólica, das togas femininas pelos tribunais?
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