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O HUMANO EM ESTADO DE EXCEÇÃO DIGITALREFLEXÕES SOBRE OS TEMAS 987 E 533 DO STF

  • Cynara Almeida
  • 14 de out.
  • 3 min de leitura


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Cynara Almeida Pereira

Pós-graduanda em Direito Público (PUC/RS). LL.M. em Direito Processual Civil (FGV). Advogada no escritório Santos Perego e Nunes da Cunha.




Em 26 de junho de 2025, o Supremo Tribunal Federal, instância máxima de controle constitucional, julgou fatos que têm escapado às normas constitucionais. São os fatos narrados nos Recursos Extraordinários 1.037.396 (Tema 987) e 1.057.258 (Tema 533), a partir dos quais a Corte definiu os limites da responsabilidade civil das plataformas digitais à luz do artigo 19 do Marco Civil da Internet[1].


O julgamento se debruçou sobre duas questões centrais: a constitucionalidade do artigo 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que condiciona a responsabilização das plataformas digitais à existência de ordem judicial prévia, e a definição do regime jurídico aplicável a essas plataformas diante da necessidade de proteger os direitos fundamentais e os valores democráticos consagrados pela Constituição de 1988 no ambiente digital.


Não poderia ser simples. E, de fato, não foi. Diante de tarefa tão complexa, expõe-se com nitidez a condição do homem contemporâneo: vive-se em um “estado de exceção digital”.


É que a norma em exame (Lei nº 12.965/2014),  que pretendia ser neutra, ao condicionar a responsabilidade das plataformas a uma decisão judicial prévia, converteu-se em instrumento de omissão diante de danos concretos à dignidade humana.


Com ela, o espaço digital, dimensão inédita de expressão, também se tornou arena de desinformação e violência simbólica em escala global. Um dilema ético-jurídico central do nosso tempo.


Essa tensão é o que Giorgio Agamben denominou de “estado de exceção” permanente, no qual a vida é capturada pela norma, mas nunca plenamente contida por ela[2]. Desse modo,  o humano, por sua vez, é reduzido à “vida nua”, isto é, a uma existência biológica desprovida de proteção simbólica, justamente quando o ordenamento suspende a norma em nome da própria norma.


Não é por acaso que o Supremo Tribunal Federal, ao retomar o julgamento sobre a responsabilização das redes sociais pelo conteúdo publicado por terceiros (interpretação do art. 19 do Marco Civil da Internet), reconheceu a inconstitucionalidade parcial e progressiva do dispositivo, afirmando que a regra de responsabilização apenas mediante ordem judicial não oferece proteção suficiente a bens jurídicos constitucionais de alta relevância, como os direitos fundamentais e a própria democracia.


Como efeito, a decisão estabeleceu que as plataformas poderão ser responsabilizadas, mesmo sem ordem judicial, quando notificadas extrajudicialmente sobre conteúdos ilícitos e não agirem para removê-los, ampliando o regime anteriormente restrito a casos de divulgação não consentida de nudez.


Ademais, impôs um dever de cuidado reforçado em hipóteses de crimes graves, como terrorismo, racismo, violência de gênero, atos antidemocráticos e pornografia infantil, exigindo atuação proativa para impedir a circulação desses conteúdos.


Dessa forma, ao reinterpretar a norma para ampliar a proteção de direitos sociais e fundamentais, a Corte constitucional reafirmou, ao cabo, que o Direito não pode permanecer indiferente diante dos sofrimentos produzidos por novas formas de sociabilidade digital.

À propósito, também lançou luz sobre a necessidade de atualização legislativa. É que a atual redação do artigo 19 do Marco Civil da Internet não confere proteção adequada aos direitos fundamentais, especialmente diante da complexidade do ambiente digital contemporâneo, como ressaltado no voto prevalente proferido pelo Ministro Dias Toffoli no RE 1.037.396[3].


De acordo com a decisão, enquanto o Congresso Nacional não editar nova lei sobre o tema, as plataformas digitais serão responsabilizadas civilmente pelos danos decorrentes de conteúdos gerados por terceiros em casos de crimes em geral ou atos ilícitos se, após receber um pedido de retirada, deixar de remover o conteúdo. A regra também vale para os casos de contas denunciadas como falsas.


Nesse novo território, se não se realiza a tarefa jurídica de proteger a liberdade de expressão sem permitir que ela seja instrumentalizada para a violação de direitos fundamentais, há o dano concreto à dignidade humana. Então é a vida que interpela o Direito: se este quiser permanecer humano, precisa reaprender a se deixar afetar por ela, lembrando-lhe do homem não como um ente a ser domesticado pela lei, mas como aquele que, por meio da sua própria vulnerabilidade, lembra ao Direito sua razão de ser.

  

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 1.037.396 (Tema 987) e RE 1.057.258 (Tema 533). Julgamento em 26 jun. 2025. Disponível em: https://portal.stf.jus.br. Acesso em: 9 out. 2025.

[1] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 1.037.396 (Tema 987) e RE 1.057.258 (Tema 533). Julgamento em 26 jun. 2025. Disponível em: https://portal.stf.jus.br. Acesso em: 9 out. 2025.

[2] AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 18–23.

[3] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 1.037.396 (Tema 987) e RE 1.057.258 (Tema 533). Julgamento em 26 jun. 2025. Disponível em https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Informac807a771oa768SociedadeArt19MCI_vRev.pdf . Acesso em: 9 out. 2025.

 

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