O CUIDADO INVISÍVEL NOS JULGADOS DO DIREITO DE FAMÍLIA
- Tatyanna Zanlorenci
- 10 de jun.
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Tatyanna Costa Zanlorenci
Especialista em direito de família e sucessões, presidente da Comissão de Planejamento Patrimonial e Sucessório da OABDF Subseção do Guará, presidente da Comissão de Relações Governamentais e Institucionais do IBDFAMDF e presidente da Associação da Criança Feliz no Distrito Federal. Advogada, jornalista e palestrante.
Em dados trazidos pelo Relatório anual Socioeconômico da Mulher (RASEAM) 2025, o número de casas chefiadas por mulheres no Brasil no ano de 2023 é de 40,2 milhões, superando o número de lares mantidos por homens que é de 37,5 milhões. Nos últimos 5 anos mais de 800 mil crianças foram registradas ao nascer sem o nome do pai. Esses números mostram que a sociedade brasileira vem mudando e essas mudanças precisam ser alcançadas de alguma forma pelo ordenamento jurídico pátrio.
No direito de família, ramo de direito privado, vem tomando força um conceito sutil e capaz de transformar os julgados que envolvem as ações de guarda, regulamentação da convivência e principalmente de alimentos: o cuidado invisível.
Se ele é invisível, ele não é remunerado. Se ele é invisível, nenhum olho consegue ver mas é ele que garante que o arroz cru, fique cozido, que a carteira da vacinação esteja completa, que o tênis um número maior seja comprado ano a ano, que os lápis sejam apontados, que o remédio de piolho e de verme seja ministrado todo ano na época do inverno, que o pediatra seja agendado, que os presentes das inúmeras festinhas infantis que podem acontecer durante 365 dias (em dias mais de uma festa) sejam motivos de alegria com a entrega de um presente para o aniversariante.
Sem contar com toda a elaboração do aniversário, dos almoços de domingo comemorativos (dia dos pais, dia das mães, dia dos avós) e dos pacotes de viagens ou programas especiais a serem feitos durante os 30 dias de férias no meio do ano e os quase 60 de dezembro até fevereiro todo santo ano. Ah as exposições e feiras de ciências temporárias ou o cinema a céu aberto também fazem parte da lida. É o sentar pra ajudar a escrever letrinhas, usar botões da caixa de costura pra ensinar o par e o impar, levar para ver as nuvens e pro curso de pintura ou de ukulele. É acompanhar o futebol debaixo do bloco mesmo tendo prazos e muito trabalho para fazer em casa e de casa. Dar banho, fazer comida (com produtos orgânicos pensando em hoje é dia do brócolis, amanhã do espinafre e depois da couve-flor), faxinar a casa, arrumar as gavetas( tirando o que não serve mais), comprar os alimentos que serão consumidos, cuidar das roupas (lavar, estender, passar e guardar), prevenir doenças com higiene e boa alimentação e quando alguém adoece esquecer a vida para reestabelecer a saúde alheia, jamais ficar doente, quando terminar o café da manhã, já pensar no almoço e no lanche e no jantar… isso todo dia o dia todo. É algo além de pagar os boletos e afastar os credores visíveis que possam aparecer. O dicionário online de português define o cuidar como cogitar, imaginar, pensar e meditar.
É algo além de colocar a comida na mesa que em muitas famílias ela aparece magicamente se transformando de vegetais crus no supermercado em uma lasanha de berinjela ou numa salada com tomatinhos cerejas divertidos e atrativos para os pequenos. A economia do cuidado é essencial para a humanidade.
Tradicionalmente, por conta da história de desenvolvimento humano, os homens saem pra caçar e as mulheres cuidam da prole. Estava lá desenhado nas cavernas, nos fósseis dos primórdios da humanidade. Desta forma, segue até os dias atuais em lares do mundo todo, e esse cuidado com a casa e com os descendentes muitas vezes é exercido por um dos genitores e no Brasil, sua grande maioria e tradicionalmente a mãe que sem receber uma contrapartida lida com o equilíbrio de bandejas sobrecarregadas todo segundo de todo santo dia.
O direito precisa atuar e garantir um equilíbrio social. Essas tarefas domésticas, a atenção/tensão emocional, o acompanhamento escolar, a organização da rotina dos filhos e inúmeras outras atividades essenciais são realizadas não apenas para os filhos, mas para os maridos e eventual família extensa que coabite aquela família para o bem-estar familiar. Muitas mulheres que cuidam dos filhos, muitas vezes cuidam dos pais já idosos ou do sogro e da sogra, mas isso é pauta pra outro artigo.
Por muito tempo, esse cuidado passou despercebido nas análises judiciais, que se concentravam majoritariamente nos aspectos financeiros da dissolução familiar, como a partilha de bens e a fixação da pensão alimentícia sob a ótica estrita da necessidade e da possibilidade econômica. Usando comprovantes de gastos que envolviam números gastos com moradia, alimentação, saúde (aqui apenas a física com raros recibos de psicólogos ou terapias para a saúde mental), transporte, vestimentas, lazer (muita gente se assusta com esse tópico e isso é real) e educação (em média é o valor mais alto). Contudo, uma crescente sensibilidade nos tribunais e a provocação de muitos advogados de família tem buscado reconhecer e valorizar essa dedicação integral, compreendendo que ela possui um valor intrínseco e um impacto significativo na vida dos filhos e na própria capacidade do genitor cuidador de se inserir ou reinserir no mercado de trabalho. Embora tais tarefas ocultas não sejam precificadas, elas geram um custo físico, profissional, patrimonial e psiquico de quem as realiza.
Esse reconhecimento ultra necessário e gradativo pode ser observado nos pedidos das petições e consequentemente nas sentenças proferidas especialmente na fixação da pensão alimentícia (que ultrapassa as necessidades materiais dos filhos), na fixação da guarda (levando em conta que genitores não nasceram fazendo escola de parentalidade e filhos não nasceram com manual), logo é dever de ambos aprenderem e desenvolverem o afeto por meio da convivência familiar que é um direito positivado na norma civil brasileira, sempre priorizando o bem-estar da prole e a manutenção de um ambiente estável, seguro e afetivo. Outro ponto que tem avançado é em relação a partilha de bens nos casos de divórcio ou dissolução de união estável, já que em muitos casos a mulher deixou trabalho e profissão (muitas vezes sendo acordado verbalmente entre o casal durante a descoberta da gestação) e se dedicou primordialmente aos cuidados da casa e dos filhos e nas sentenças esse desequilíbrio econômico-social–financeiro pode mitigar as desigualdades na partilha do patrimônio construído na constância do matrimônio. Principalmente nos casos, e são muitos, em que a mulher deixa a profissão para se dedicar a casa e a prole. Hoje é possível fazer um acordo pré nupcias prevendo isso e estabelecendo uma remuneração em caso de rompimento conjugal futuro.
As necessidades visíveis são de fácil constatação. Entretanto, cada vez mais é necessário um olhar atento e uma sensibilidade para os operadores do direito para ir além do palpável, além do comprovante dos gastos do mercado e da farmácia, considerar o tempo e a energia despendidos no cuidado como um fator importante a ser ponderado, em prol de uma maior equidade na contribuição de ambos os genitores na manutenção dos filhos.
Atualmente, além dos alimentos aos menores, que estão sujeitos ao poder familiar, com fulcro no artigo 1630 do Código Civil e no artigo 227 da Constituição Federal que assegura à criança e ao adolescente o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer entre outros direitos, já que possui proteção integral no sistema de proteção nacional e que pelo princípio da solidariedade, cuja fonte de obrigação alimentar são fundados nos laços de parentalidade que ligam as pessoas que constituem uma família (aqui sem definição engessada do conceito de família) é obrigação de pais assistir, criar e educar os filhos menores, que por definição do Estatuto da Criança e do Adolescente é até os 18 anos, mas o direito de família vem avançando e seja por cursar uma graduação ou outra necessidade tem aumentando o prazo desse dever de cuidar nem que seja financeiramente da prole mesmo após atingir a maioridade.
Além dos alimentos para os filhos, é possível o pedido de alimentos compensatórios, pagos a quem dedicou uma significativa parte da vida dedicado exclusivamente ao cuidado ao tempo e a energia, além do financeiro como um fator a ser ponderado na fixação de uma pensão compensatória para o genitor que se dedicou mais intensamente a essa função.
Ainda que o reconhecimento pleno e sistemático do cuidado invisível nos julgados do Direito de Família seja um processo em construção, a crescente atenção a essa dimensão representa um avanço importante para uma análise mais completa e justa das dinâmicas familiares. Ao trazer à luz essa forma essencial de trabalho, o direito busca promover decisões que reflitam de maneira mais fiel a complexidade das relações familiares e o valor inestimável do cuidado na formação e no bem-estar das futuras gerações.
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