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A PERSPECTIVA DE GÊNERO NO EXERCÍCIO DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

  • Adrise Lage de Mendonça Mendes
  • há 5 dias
  • 6 min de leitura

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Adrise Lage de Mendonça Mendes

Mestra em Direito pelo IDP, Mestranda em Direito Empresarial pela Universidad de Mendoza (Argentina) e LL.M em Direito Empresarial pela FGV. Associada do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (IDASAN). Advogada especializada em Direito Administrativo Sancionador e Compliance Anticorrupção. Sócia da Hage & Navarro Sociedade de Advogados.



A igualdade não se alcança com o silêncio e se o Direito pretende ser instrumento de justiça, e não engrenagem de reprodução de desigualdades, ele precisa olhar atentamente para o que antes não era visto. Precisa ouvir o que antes era silenciado. E, sobretudo, precisa reconhecer que a imparcialidade não se confunde com indiferença às estruturas que moldam desigualdades.


O Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, documento elaborado e publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[1], representa um dos mais significativos avanços na hermenêutica brasileira. Longe de criar um “direito paralelo”, o documento consolida diretrizes interpretativas destinadas a assegurar que as desigualdades de gênero históricas, estruturais e institucionalizadas sejam reconhecidas e consideradas na interpretação e aplicação do Direito.

Sob essa perspectiva, é importante reconhecer que as estruturas de poder e as dinâmicas institucionais de fato incidem de forma desigual sobre homens e mulheres, produzindo assimetrias que atravessam tanto o espaço público quanto o privado. Reconhecer essa realidade não compromete a imparcialidade. Ao contrário, qualifica-a, ao exigir do julgador a sensibilidade para identificar as desigualdades estruturais e o compromisso efetivo com o princípio constitucional da isonomia.


De forma contundente, a Ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), ressalta que "esse é um tema crucial para as mulheres, e esse é um trabalho primoroso. Vivemos em uma sociedade, infelizmente, impregnada por um machismo estrutural e sistêmico, e precisamos agir contra isso"[2], reconhecendo a persistência das barreiras de gênero e a importância dessa iniciativa.


Conforme observa Anne Caroline Wendler[3], julgar com perspectiva de gênero significa reconhecer que as desigualdades estruturais influenciam não apenas os fatos, mas também a própria interpretação e aplicação do Direito. Essa compreensão confere ao protocolo, de fato, natureza de método interpretativo legítimo, tal como a analogia ou a aplicação de princípios.


À luz dessas premissas, o Protocolo propõe um modelo de decisão contextualizada, orientado a revelar como normas e práticas aparentemente neutras produzem impactos distintos sobre mulheres e homens. Trata-se, em última análise, de deslocar o foco da neutralidade meramente formal para a realização da igualdade substantiva.


Concebido como instrumento de orientação da atividade jurisdicional e, atualmente, dotado de força normativa pela Resolução CNJ n. 492/2023, o Protocolo contém diretrizes que podem ser legitimamente projetadas para além da esfera judicial. À luz da própria racionalidade do referido documento, tais parâmetros mostram-se plenamente aplicáveis à esfera administrativa.


Diante disso, emerge a questão central deste artigo: é possível aplicar o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero às servidoras públicas que respondem a Processos Administrativos Disciplinares (PAD)?


A própria redação do Protocolo, ao tratar do Direito Administrativo, reconhece a importância de que o julgamento com perspectiva de gênero alcance também os processos administrativos. O documento evidencia que, nessa seara, as decisões não podem desconsiderar os impactos assimétricos decorrentes da organização social do trabalho e da distribuição das responsabilidades familiares, que recaem, na maioria das vezes, de maneira desproporcional sobre as mulheres, sob pena de reproduzir ou agravar desigualdades já existentes.


À luz desse quadro, acredita-se que a própria Administração Pública já esteja apta a internalizar tal filtro hermenêutico. Portanto, autoridades investidas do poder administrativo sancionador, podem e devem adotar o julgamento com perspectiva de gênero, como forma de assegurar que suas decisões sejam sensíveis às desigualdades que permeiam o exercício da função pública. Assim, a neutralidade aparente das normas, ainda que na esfera administrativa, não pode constituir obstáculo à efetividade dos direitos fundamentais.


Ademais, o Direito Administrativo Sancionador, ao se inspirar nas garantias do Direito Penal, exige que o julgamento disciplinar observe o devido processo legal e o princípio da individualização da sanção. Isso implica analisar não apenas a materialidade e a autoria da infração, mas também o contexto em que ela se deu e os fatores que influenciaram a conduta[4].


E é precisamente nesse ponto que o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero oferece um aprimoramento metodológico à atuação das autoridades administrativas sancionadoras. Trata-se de reconhecer que, em determinadas situações, a aparente infração funcional pode estar relacionada a fatores estruturais alheios à vontade da servidora, como sobrecarga de trabalho decorrente de acúmulo de funções, ausência de políticas de substituição em licenças-maternidade e demais dificuldades associadas ao cuidado familiar.


Além disso, cabe à autoridade julgadora considerar contextos de violência doméstica ou institucional que impactam diretamente a saúde física e emocional de servidoras públicas, bem como situações de assédio moral ou sexual no ambiente de trabalho, que podem gerar retraimento, absenteísmo ou queda de desempenho. Também é relevante observar a falta de infraestrutura adequada para amamentação ou cuidado com filhos pequenos no local de trabalho e a ausência de políticas de acolhimento para servidoras nessas e em outras situações de vulnerabilidade.


Ressalte-se, contudo, que a adoção dessa perspectiva não implica em flexibilizar deveres funcionais ou esvaziar a responsabilidade administrativa de servidoras públicas. O que se exige é que a análise disciplinar seja conduzida de forma contextualizada e proporcional, de modo a evitar que parâmetros implícitos, muitas vezes moldados por expectativas masculinas de desempenho, disponibilidade ou presença, distorçam a avaliação da conduta de servidoras.


Embora o STJ ainda não tenha enfrentado, em precedente específico, a aplicação do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero envolvendo o direito administrativo sancionador, decisões monocráticas em direito administrativo já mostram que essa lente interpretativa vem sendo incorporada de forma consistente.


Em casos como o REsp 2.096.063[5] e o REsp 2.099.611[6], ambos relatados pelo Ministro Paulo Sérgio Domingues, o Tribunal reconheceu a centralidade da proteção integral da criança e a necessidade de considerar a condição da servidora pública, mulher e mãe, especialmente quando responsável pelo cuidado de dependentes que demandam atenção diferenciada. A mesma direção aparece no RE na APn 902[7], de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, ao destacar que a “violência de gênero é meio de perpetuação da assimetria estrutural de poder” sendo “imprescindível que o Poder Judiciário utilize as lentes de gênero na interpretação do Direito”.


Esse conjunto de decisões deixa claro que o Protocolo já não é um ornamento normativo: ele passou a informar, de maneira concreta, a análise de casos que envolvem servidoras públicas, especialmente aquelas que acumulam funções de cuidado.


Para ilustrar a aplicação prática do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero no contexto administrativo sancionador, vale destacar possíveis situações enfrentadas por servidoras públicas.


Imagine o caso de uma servidora municipal que responde a um PAD por atrasos reiterados. A apuração revela que ela enfrenta situação de violência doméstica, com episódios recorrentes que afetam sua saúde física e emocional e que, portanto, dificultam seu comparecimento no horário regular. À luz do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, entende-se que caberia à autoridade sancionadora considerar o contexto de vulnerabilidade e as barreiras enfrentadas pela servidora, de modo a evitar uma punição automática.


Em outro cenário, uma servidora é advertida por suposta negligência ao não atingir metas fixadas de forma uniforme para toda a equipe, a despeito de desempenhar, além das metas comuns, um conjunto de tarefas administrativas e de apoio que não é capturado pelos indicadores de produtividade em questão. Assim, com base no Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, as autoridades sancionadoras deveriam considerar não apenas os resultados, mas também o contexto em que a servidora está inserida e as assimetrias na distribuição das tarefas.


Esse último exemplo evidencia como métricas aparentemente neutras podem ignorar tarefas invisíveis que recaem, com frequência, sobre as mulheres. Quando a avaliação desconsidera o conjunto real de atribuições, a sanção deixa de refletir a conduta da servidora e passa a reproduzir um padrão organizacional desigual. E é precisamente para corrigir distorções desse tipo que o julgamento com perspectiva de gênero se mostra indispensável.


Esses exemplos revelam que a perspectiva de gênero pode operar como um instrumento de aprimoramento do exame disciplinar, permitindo que a autoridade sancionadora identifique contextos estruturais que impactam a conduta funcional. Não se trata de flexibilizar deveres ou criar exceções indevidas, mas de assegurar que a responsabilização administrativa reflita, de forma proporcional e fundamentada, a realidade concreta em que a servidora pública está inserida.


Em última análise, julgar com perspectiva de gênero é fortalecer a própria legitimidade do Estado no exercício de seu poder sancionador. É assegurar que nenhuma servidora pública seja avaliada e julgada sem que sua realidade concreta, social e institucional seja devidamente considerada. Porque, ao fim e ao cabo, essa forma de julgar reafirma que o Direito não se esgota na letra fria da lei, mas se realiza na sensibilidade para aquilo que ela, sozinha, não alcança.


[1] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Julgamento com perspectiva de gênero. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-de-genero/. Acesso em: 9 nov. 2025.

[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero passa a ser obrigatório no Judiciário. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/15032023-Protocolo-para-Julgamento-com-Perspectiva-de-Genero-passa-a-ser-obrigatorio-no-Judiciario.aspx. Acesso em: 9  nov. 2025.

[3] WENDLER, Anne Caroline. O julgamento com perspectiva de gênero como método interpretativo: Aplicações e desafios para a magistratura. Migalhas, 29 jul. 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/435538/julgamento-com-perspectiva-de-genero-usos-e-desafios-na-magistratura. Acesso em: 9 nov. 2025.

[4] SERRANO, Antônio Carlos Alves Pinto. O direito administrativo sancionador e a individualização da conduta dos agentes sancionados. Revista Digital de Direito Administrativo, Ribeirão Preto, 2020.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 2.096.063. Relator: Ministro Paulo Sérgio Domingues. DJe, 07 out. 2024.

[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 2.099.611. Relator: Ministro Paulo Sérgio Domingues. DJe, 01 out. 2024.

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. APn 902. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. DJE, 03 jul. 2025.

 

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