OBRAS GERADAS POR INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E OS DESAFIOS DO DIREITO AUTORAL BRASILEIRO
- Mycaella Castro
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Mycaella Castro
Bacharela em Direito pelo IDP. Advogada de Direito Público no Cypriano Barbosa - Sociedade de Advogados.
O debate jurídico sobre inteligência artificial (IA) e direitos autorais costuma se concentrar na possibilidade de reconhecimento da máquina como autora. Embora relevante, essa abordagem não enfrenta a questão central que emerge no contexto brasileiro acerca de como o sistema de direito autoral, estruturado sobre a figura do autor humano, responde à produção de conteúdos que não possuem autoria identificável.
Assim, considerando que as ferramentas de IA generativa produzem textos, imagens, músicas e vídeos de forma autônoma, ou seja, sem que seja possível atribuir a criação intelectual a uma pessoa específica, nos deparamos em uma realidade que não apenas tensiona o conceito atual de autoria, mas revela uma lacuna normativa com impactos diretos na prática jurídica, especialmente no registro de obras, na resolução de conflitos e na definição de responsabilidades civis. A questão, portanto, não se resume a reconhecer ou não a IA como autora, mas lidar com as consequências jurídicas da ausência de autoria em um sistema que pressupõe sua existência.
Os direitos autorais no Brasil é disciplinado pela Lei n.º 9.610/1988 (Lei de Direitos Autorais[1]), no qual o conceito de autor pode ser compreendido com base no art. 7º, que associa a obra intelectual como criação do espírito, associada à atividade humana dotada de criatividade e originalidade. O art. 11º da LA reforça essa concepção ao estabelecer que autor é pessoa física criadora da obra, evidenciando que a proteção autoral está vinculada à intervenção humana[2].
A inexistência de autoria humana em obras geradas por IA gera efeitos que vão além da simples negativa de proteção autoral. Em primeiro lugar, surge a dificuldade de registro da obra, órgãos como a Biblioteca Nacional, por exemplo, exigem a identificação de um autor humano para fins de registro, o que inviabiliza o procedimento quando o conteúdo é gerado autonomamente por um sistema de IA[3]. Por conseguinte, há incerteza quanto à prova de titularidade em eventuais disputas judiciais, já que não há sujeito claramente identificável como criador.
Além disso, a ausência de autoria compromete a aplicação de institutos tradicionais, como cessão de direitos, licenciamento e proteção contra plágio, que pressupõem a existência de um titular originário[4]. O sistema, portanto, mostra-se pouco preparado para lidar com obras que surgem fora do paradigma clássico da criação humana.
Nesse cenário, o uso de conteúdos gerados por IA pode gerar alegações de violação de direitos autorais de terceiros, especialmente se houver semelhança com obras já existentes. A ausência de um autor humano identificável para o conteúdo dificulta a atribuição de responsabilidade civil e a produção de prova pericial.
Além disso, o debate aborda a atribuição da titularidade ao usuário que interage com o sistema, desde que demonstrada contribuição criativa relevante, e a atribuição da titularidade ao desenvolvedor da IA, tese que encontra resistência pela distância entre o código e o resultado final[5].
Há ainda uma terceira corrente que defende que tais criações podem ser comparadas às obras de domínio público, dada a sua ausência de originalidade humana. Essa visão se baseia no fato de que sistemas de IAs generativas operam a partir de bases de dados extensas e técnicas de machine learning e data mining[6].
Essas questões tendem a chegar ao Judiciário brasileiro, no qual entende que os direitos dos autores permanecem invioláveis e essenciais para a valorização da criatividade.
Apesar desse entendimento fundamental, há a necessidade de atualizar a jurisprudência e os mecanismos de fiscalização, com o objetivo de equilibrar o acesso à informação e o respeito aos direitos dos criadores, especialmente em função da inexistência de regulação específica para IA no campo dos direitos autorais.
Contudo, é importante destacar que o Brasil tem apresentado iniciativas rumo à regulamentação da IA, com o lançamento da Estratégia Brasileira de Inteligência Artificial em 2021. Além disso, a própria Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), ainda que seja anterior ao surgimento das IAs, possui diretrizes importantes em relação ao tratamento de dados pessoais, nas quais impactam diretamente a utilização de IA.
Atualmente, a regulamentação[7] do uso de IA no Brasil tem sido discutida através do PL n.º 2.338/2023, que após a aprovação pelo Senado aguarda a deliberação da Câmara dos Deputados. No que diz respeito aos direitos autorais e a produção de obras por IAs, o projeto estabelece que o material utilizado precisa ser obtido de forma legítima, possibilitando a proibição de conteúdos protegidos pelo titular de direitos autorais e, caso as obras sejam utilizadas no desenvolvimento de sistemas de inteligência artifical comerciais, o titular terá direito à remuneração.
Apesar dessas iniciativas, na ausência de regulamentação específica, caberá à doutrina e ao Judiciário desenvolver soluções interpretativas que preservem os objetivos do direito autoral, estimular a criação humana e garantir segurança jurídica, sem inviabilizar o desenvolvimento tecnológico ou a utilização de IA como uma ferramenta.
O principal desafio jurídico trazido pelas obras geradas por inteligência artificial não está em reconhecer a máquina como autora, hipótese incompatível com o ordenamento brasileiro, mas em lidar com a lacuna de autoria em um sistema que pressupõe sua existência. Essa ausência produz efeitos práticos relevantes, especialmente no registro de obras, na atribuição de titularidade e na responsabilização civil.
Portanto, na ausência de uma norma específica, a solução mais coerente com o sistema atual é reconhecer que obras geradas integralmente por IA não se inserem automaticamente no regime tradicional de direitos autorais, exigindo tratamento jurídico cauteloso e interpretativo.
[1] BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9610.htm. Acesso em: 01 dez. 2025.
[2] BRASIL. Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Direitos autorais e obras geradas por inteligência artificial. Rio de Janeiro: INPI, [s.d.]. Disponível em: https://www.gov.br/inpi/pt-br/servicos/programas-de-computador/Direitosautoraiseobrasgeradas.pdf. Acesso em: 01 dez. 2025.
[3] BRASIL. Fundação Biblioteca Nacional. Como solicitar o registro da sua obra. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, [s.d.]. Disponível em: https://antigo.bn.gov.br/passo-a-passo/como-solicitar-registro-sua-obra. Acesso em: 10 dez. 2025.
[4] ESPIRITO SANTO, Alex do; MARQUES, Thiago Domingos; LEITE, Breno Ricardo de Araújo; FREY, Irineu Afonso. Direito autoral de criações feitas por inteligência artificial: diferentes percepções para o mesmo dilema. Revista Gestão e Secretariado (GeSec), São Paulo, v. 13, n. 3, p. 1832–1848, set./dez. 2022. DOI: https://doi.org/10.7769/gesec.v13i3.1447. Acesso em 08 dez. 2025
[5] GERVAIS, Daniel J. The machine as author. Iowa Law Review, v. 105, n. 4, p. 2053–2086, 2020. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3359524. Acesso em: 08 dez. 2025.
[6] THOMSON REUTERS BRASIL. Regulação da inteligência artificial no Brasil e os direitos autorais. São Paulo: Thomson Reuters, [s.d.]. Disponível em: https://www.thomsonreuters.com.br/pt/juridico/blog/regulacao-ia-brasil-direitos-autorais.html. Acesso em: 01 dez. 2025.
[7] BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto que regulamenta o uso da inteligência artificial no Brasil. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1159193-projeto-que-regulamenta-uso-da-inteligencia-artificial-no-brasil. Acesso em: 08 dez. 2025.
ASCENSÃO, José de Oliveira. Estudos sobre direito autoral. Lisboa: Associação Portuguesa de Direito Intelectual (APDI), [s.d.]. Disponível em: https://ioda.org.br/wp-content/uploads/2022/11/Estudos-de-Jose-Oliveira-Ascensao_Portugues-3.pdf. Acesso em: 08 dez. 2025.
BRASIL. Fundação Biblioteca Nacional. Como solicitar o registro da sua obra. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, [s.d.]. Disponível em: https://antigo.bn.gov.br/passo-a-passo/como-solicitar-registro-sua-obra. Acesso em: 10 dez. 2025.
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). O STJ em busca do equilíbrio entre acesso à informação e respeito aos direitos autorais no mundo digital. Brasília, DF: Superior Tribunal de Justiça, 9 nov. 2025. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/09112025-O-STJ-em-busca-do-equilibrio-entre-acesso-a-informacao-e-respeito-aos-direitos-autorais-no-mundo-digital.aspx. Acesso em: 11 dez. 2025.
ESPIRITO SANTO, Alex do; MARQUES, Thiago Domingos; LEITE, Breno Ricardo de Araújo; FREY, Irineu Afonso. Direito autoral de criações feitas por inteligência artificial: diferentes percepções para o mesmo dilema. Revista Gestão e Secretariado (GeSec), São Paulo, v. 13, n. 3, p. 1832–1848, set./dez. 2022. DOI: https://doi.org/10.7769/gesec.v13i3.1447. Acesso em 08 dez. 2025.
LIMA, Marcela Ayana Pita de. Considerações sobre a aplicação do direito autoral nos produtos gerados por inteligência artificial no sistema jurídico brasileiro / Marcela Ayana Pita de Lima. – 2024. Disponível em: https://www.repositorio.ufal.br/bitstream/123456789/14876/1/Considera%C3%A7%C3%B5es%20sobre%20a%20aplica%C3%A7%C3%A3o%20do%20direito%20autoral%20nos%20produtos%20gerados%20por%20intelig%C3%AAncia%20artificial%20no%20sistema%20jur%C3%ADdico%20brasileiro.pdf. Acesso em 08 dez. 2025.
GERVAIS, Daniel J. The machine as author. Iowa Law Review, v. 105, n. 4, p. 2053–2086, 2020. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3359524. Acesso em: 08 dez. 2025.
THOMSON REUTERS BRASIL. Regulação da inteligência artificial no Brasil e os direitos autorais. São Paulo: Thomson Reuters, [s.d.]. Disponível em: https://www.thomsonreuters.com.br/pt/juridico/blog/regulacao-ia-brasil-direitos-autorais.html. Acesso em: 01 dez. 2025.

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