CAMINHOS E DESAFIOS NO ACESSO À GRATUIDADE DE JUSTIÇA NAS SERVENTIAS EXTRAJUDICIAIS
- Ana Clara Alcântara
- 17 de jun.
- 7 min de leitura

Ana Clara de Souza Alcântara e Silva
Aluna especial de mestrado em Teorias do Direito e da Justiça (UFBA). Pós-graduação em Direito Notatorial e Registral (Legale). Pós-gradução em Direito Público (UCAM). Advogada Sócia Fundadora do Ana Clara Alcântara Advocacia Especializada. Especialista em inventários internacionais e patrimoniais.
O Direito Notarial e Registral se trata de ramo do direito que cuida das notas e registros realizados nos cartórios extrajudiciais. Para muita gente, falar em cartório é falar em burocracia. Mas, em verdade, os atos dos profissionais notários e registradores é que garantem a segurança, a autenticidade, a eficácia dos atos jurídicos. Mais que burocracia, é garantia de algum direito de um cidadão.
A necessidade do homem em deixar marcada a sua história, tornando públicos fatos que eram considerados importantes para, desse modo, garantir direitos, sempre existiu. A bíblia nos revela a história de um homem que escreveu dez mandamentos em uma pedra. As pinturas rupestres contam histórias dos nossos antepassados. Assim, a história vai se perpetuando e se aperfeiçoando ao longo do tempo.
O sistema das serventias extrajudiciais, assim hoje denominada para falar dos cartórios extrajudiciais, tem ganhado cada vez mais relevância diante da sua capacidade em reduzir litígios, trazendo soluções eficazes para o cotidiano do cidadão sem depender da atuação de um juiz para mediar eventuais conflitos, sem abrir mão da segurança jurídica que também traz o Poder Judiciário.
Apesar de toda a independência e autonomia das serventias, engana-se quem acredita que os cartórios são de total independência. As serventias são vinculadas ao tribunal de justiça do seu respectivo estado, cada estado tem seu próprio código de normas que define as normas e procedimentos dos serviços notariais e registrais. Normas das quais se dão através de diretrizes trazidas pelo Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça, documento que acompanha a Constituição Federal, bem como legislação em vigor em todo o país. De modo que, irregularidades que apontam contradições e afrontam leis dos tribunais superiores são passíveis de inconstitucionalidade, ineficácia, visto que as serventias extrajudiciais compõem o poder judiciário e, portanto, se complementam com a finalidade de garantir a segurança ao cidadão.
Caso emblemático que envolve as serventias extrajudiciais foi tratado no Supremo Tribunal Federal, em que em Ação Direta de Inconstitucionalidade – DI 2415, sendo declarado que a reorganização de serventias extrajudiciais só pode ser feita por lei de iniciativa do Judiciário, sob o fundamento de se trata de serviço auxiliar do Judiciário, já que o profissional a exerce por meio de delegação por concurso público (STF, 2011)[1].
A acessibilidade aos serviços extrajudiciais granjeia destaque importante quando considerada a gratuidade de justiça na esfera cartorária. Pois, segundo o Art. 98, inciso IX, do Código de Processo Civil, a gratuidade se estende aos emolumentos devidos a notários e registradores em atos vinculados à execução de ações judiciais ou à continuidade de processos com benefício concedido (TJDFT, 2021)[2].
Esse dispositivo representa avanço relevante para a democratização do acesso à justiça, garantindo que indivíduos em situação de hipossuficiência não sejam impedidas de exercer seus direitos por razões econômicas. Na esfera extrajudicial, essa prerrogativa tem aplicação concreta em procedimentos como registros civis (nascimento, casamento, óbito), certidões, averbações essenciais e usucapião (TJDFT, 2022)[3].
Muitos Tribunais de Justiça estaduais já editaram normativas específicas regulamentando a gratuidade cartorária, simplificando sua concessão mediante declarações auto declaratória dos interessados. Esta medida buscou eliminar entraves burocráticos e conferir maior agilidade às demandas sociais.
Não obstante esse avanço, a gratuidade não é absoluta. O tabelião ou registrador pode, precipuamente, requerer junto ao Judiciário a revogação ou substituição do benefício por parcelamento, caso tenha dúvidas sobre a hipossuficiência do solicitante, conforme previsão legal do § 8º do art. 98 do CPC. Tal mecanismo garante o equilíbrio entre o princípio do acesso à justiça e a sustentabilidade do sistema notarial, evitando o uso indevido do benefício.
É importante lembrar que o Direito Notarial e Registral vai muito além de procedimentos burocráticos: é sustentáculo da segurança, autenticidade e eficácia jurídica (1º Tabelionato Fischer, 2014, p. 1). Por isso, ao incorporar a gratuidade de justiça, conforme previsão do art. 98, IX do CPC, aos atos extrajudiciais, resgata-se a promessa constitucional de acesso universal ao sistema jurídico, sem ônus econômico para os mais vulneráveis.
A partir desse panorama, surge o problema de pesquisa: Como se dá o acesso à gratuidade de justiça nas serventias extrajudiciais e quais são os principais desafios presentes, tanto na uniformidade de aplicação quanto na manutenção da sustentabilidade financeira dessas serventias?
O objetivo proposto para este artigo foi conhecer os mecanismos de concessão da gratuidade de justiça nos cartórios extrajudiciais, identificando entraves operacionais e normativos que impactam tanto o acesso ao direito quanto a viabilidade econômico-financeira das serventias.
Acesso à gratuidade de justiça nas serventias extrajudiciais: breves apontamentos
O acesso à gratuidade de justiça nas serventias extrajudiciais constitui uma significativa vitória em prol da efetivação de direitos fundamentais, entretanto, em uma perspectiva de operação, identificam-se limitações de ordem institucional e financeira que, enfim, demandam uma análise sensível de custo-benefício.
De fato, dezenas de Tribunais de Justiça dos Estados recorreram do emprego desse artifício para emitir resoluções normativas que simplificam a aprovação de pedidos de gratuidade, desobrigando o jurisdicionado de comprovar documentos complexos, e bastando, por vezes, um simples pedido de insolvência.
Essas afirmações podem levantar suspeitas infundadas, afetando a integridade do usuário. Devido a essas complexidades práticas, o Art. 98, § 8º do CPC permite impugnar o benefício contra uma decisão de um oficial de registro se o tabelião ou o oficial de registro tiverem dúvidas suficientemente razoáveis sobre a verdadeira hipossuficiência do beneficiário (JusBrasil, 2025)[4].
Neste caso, as partes interessadas têm o direito de apresentar uma reclamação ao Poder Judiciário para realizar uma análise completa ou parcial da decisão tomada ou trocá-la por lavagem (nova avaliação). Por exemplo, embora a abordagem seja necessária para garantir que os cartórios mantenham sua sustentabilidade econômica, isso adiciona uma etapa adicional de burocracia que os usuários em dificuldades não deveriam lidar. Existe o risco de que as comarcas produzam decisões inconsistentes entre si.
O principal desafio reside na falta de uniformidade de aplicação. Alguns estados adotam modelos de auto declaração, enquanto outros aplicam critérios mais rigorosos de comprovação, promovendo desequilíbrios regionais no acesso à justiça gratuita. Essa desigualdade é agravada pela autonomia regulatória dos cartórios e pela ausência de padronização nacional, embora orientações do CNJ tentem suavizar o quadro.
Outro obstáculo que vale ser lembrado é a questão da sustentabilidade financeira das serventias extrajudiciais. Ainda é oportuno lembrar que a isenção dos emolumentos, como foi dito, é um significativo impacto na arrecadação, verificado por parte do setor, a partir do cotejo dos planos estaduais de gratuidade, a exemplo do que ocorreu na jurisdição da Paraíba, onde foi destinado fundo próprio com finalidade de custeá-los, no que diz respeito aos registros civis gratuitos de nascimen
tos e óbitos (Palmeira Júnior; Alencar, 2024)[5].
Ressaltando que a implementação de subsídios cruzados ou assistência governamental pode mitigar tais perdas; contudo, na ausência de supervisão adequada, pode ocasionar aumento nos custos das atividades remuneradas, elevar despesas operacionais e prejudicar a qualidade dos serviços.
Lembrando também que a carência de critérios objetivos para a declaração de hipossuficiência expõe o sistema a desequilíbrios e incertezas financeiras. Simultaneamente, a revogação judicial de benefícios gera insegurança jurídica aos usuários, que podem ser surpreendidos por cobranças futuras, além de sobrecarregar o Judiciário, paradoxalmente regredindo o ideal de desjudicialização.
Em razão disso, é aconselhável que haja a padronização normativa nacional com a elaboração de provimento nacional pelo CNJ definindo critérios objetivos mínimos (ex. renda, composição familiar, declaração formal) para a concessão da gratuidade, assegurando segurança jurídica ao cidadão e previsibilidade ao cartório.
É importante a formação de fundos estaduais específicos, financiados por percentuais de emolumentos e tributos vinculados, para compensar totalmente a renúncia de receita e prevenir subsídios cruzados entre serviços; maior fiscalização e transparência, através de imposição de relatórios semestrais pelos cartórios, detalhando volume de atos gratuitos, receitas e compensações. Um mecanismo de controle capaz de evitar fraudes, ao mesmo tempo que salvaguarda a sustentabilidade da serventia.
Além da realização de treinamentos contínuos para tabeliães e registradores acerca de procedimentos em consonância com o art. 98, § 8º, do CPC, minimizando dúvidas desnecessárias; oferecer informação ao cidadão sobre seus direitos e os limites do benefício. Ademais, Juízes das Varas de Registros Públicos devem dirimir as dúvidas em um prazo controlado, com decisões fundamentadas de maneira criteriosa e uniformização da jurisprudência interna, evitando a aplicação de critérios subjetivos.
Essas medidas harmonizam os objetivos de acesso pleno à gratuidade com a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do sistema cartorário, fortalecendo a credibilidade institucional dos serviços extrajudiciais. Assim, consolida‑se uma lógica eficiente de democratização jurídica, desjudicialização e efetiva materialização da cidadania
Considerações finais
A análise efetuada demonstra que a concessão da isenção de taxas judiciais nos cartórios extrajudiciais constitui um instrumento de significativa importância para a expansão do acesso aos direitos fundamentais, com o intuito de concretizar o princípio da igualdade previsto na Constituição. A previsão contida no art. 98, inciso IX, do CPC e os posicionamentos emitidos pelo Superior Tribunal de Justiça corroboram essa afirmação, reconhecendo que os benefícios da Justiça Gratuita se estendem de maneira legítima e integral aos atos notariais e registrais.
Entretanto, a implementação prática revela uma sutil complexidade entre duas exigências igualmente essenciais: a inadiável garantia de acesso irrestrito aos necessitados e a indispensável preservação da infraestrutura financeira das serventias. A possibilidade de revogação motivada pelo tabelião ou registrador (prevista no § 8º do art. 98 do CPC) representa um mecanismo saudável de controle, mas expõe seu uso inadequado a variações jurisprudenciais e, por vezes, incerteza jurídica para os cidadãos vulneráveis.
Portanto, conclui-se que o acesso à isenção de taxas judiciais nos cartórios extrajudiciais desempenha um papel indiscutível na promoção da cidadania e da eficácia dos direitos legais. E sua dimensão funcional só se completa com a consolidação de mecanismos de financiamento compensatório (como fundos estaduais), padronização normativa e transparência institucional.
A adoção de tais medidas permitirá não apenas fortalecer a sustentabilidade econômica das serventias, mas também promover, de forma harmoniosa, a justiça inclusiva e a desjudicialização eficaz, pilares de um sistema jurídico mais democrático e socialmente equilibrado.
[1] STF. Supremo Tribunal Federal. Reorganização de serventias extrajudiciais só pode ser feita por lei de iniciativa do Judiciário, decide STF. Brasília, 2011.
[2] TJDFT. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Assistência Judiciária Gratuita X Gratuidade de Justiça. Brasília, 2021.
[3] TJDFT. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Hipossuficiência. Brasília, 2022.
[4] JUSBRASIL. Parágrafo 8º, art. 98 da Lei nº 13.105. Código De Processo Civil, de 16 de março de 2015. 2025.
[5] PALMEIRA JÚNIOR; ALENCAR, S. M. Sustentabilidade dos atos gratuitos na atividade registral: uma análise a partir das leis 7.410/2003 e 12.510/2022 do estado da Paraíba. Campo do Saber, v. 10, n. 1, 2024.
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