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BUSCA E APREENSÃO EXTRAJUDICIAL DE VEÍCULOS: O QUE ESTÁ EM JOGO NAS ADIS 7600, 7601 E 7608

  • Ana Clara Alcântara
  • 6 de nov.
  • 7 min de leitura

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Ana Clara de Souza Alcantara e Silva 

Aluna especial de mestrado em Teorias do Direito e da Justiça (UFBA). Pós-graduação em Direito Notarial e Registral (Legale). Pós-gradução em Direito Público (UCAM). Advogada Sócia Fundadora do Ana Clara Alcântara Advocacia Especializada. Especialista em inventários internacionais e patrimoniais.




A discussão em torno da constitucionalidade da busca e apreensão extrajudicial de bens alienados fiduciariamente ganhou relevância após o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7600, 7601 e 7608 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nessas ações, o Tribunal validou a possibilidade de consolidação da propriedade e perda do bem sem intervenção judicial, nos casos de inadimplemento em contratos de garantia fiduciária, especialmente envolvendo veículos e imóveis, conforme previsto na Lei nº 9.514/1997, no Decreto-Lei nº 911/1969 e reforçado pela Lei nº 14.711/2023 (STF, 2024).

 

A decisão reacende um debate delicado quando se questiona até que ponto a celeridade e a eficiência na recuperação do crédito podem se sobrepor às garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da proteção ao direito de propriedade?

 

O presente artigo tem como objetivo analisar criticamente, ainda que de forma breve, essa decisão, compreendendo seus fundamentos jurídicos, seus impactos nas relações contratuais e as implicações para devedores e credores. O problema de pesquisa que orienta esta reflexão consiste em entender se a busca e apreensão extrajudicial, ao ser conduzida por instituições privadas ou diretamente por cartórios, respeita os limites constitucionais, sobretudo quanto à reserva de jurisdição e à inviolabilidade do domicílio, ou se representa uma flexibilização excessiva das garantias processuais em prol da segurança do mercado de crédito. Essa análise torna-se especialmente relevante diante das críticas formuladas por parte da doutrina, que aponta para uma possível inconstitucionalidade implícita da medida, ao transferir para a esfera privada atos tradicionalmente submetidos ao controle jurisdicional[1].

 

Abordar acerca desse tema é de grande relevância, tendo em vista que o número de contratos com alienação fiduciária de veículos é bastante expressivo no Brasil, bem como, devido a sua importância teórica, pois a decisão do STF representa mais um passo no movimento de desjudicialização de conflitos e execução de garantias.

 

Pelo viés social, compreender essa dinâmica é imprescindível, já que atinge diretamente consumidores, instituições financeiras e operadores do direito; além do fato do tema refletir sobre os limites entre a autonomia privada, a intervenção estatal e a preservação dos direitos fundamentais. Portanto, ao situar-se entre o direito de propriedade do credor e o devido processo legal assegurado ao devedor, a análise das ADIs 7600, 7601 e 7608 revela-se necessária e atual.

 

BUSCA E APREENSÃO EXTRAJUDICIAL: INSTRUMENTO DE EFETIVIDADE OU AMEAÇA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL? 

 

Nos últimos anos, a adoção do procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens alienados fiduciariamente, especialmente veículos, surgiu como uma das facetas mais visíveis da chamada desjudicialização forçada da posse. A Lei 14.711/2023, em conexão com o Decreto‑Lei 911/1969 e demais normas correlatas, estruturou o que muitos autores ponderam como um marco legal de garantias, ao permitir que credores retomem bens sem a necessidade prévia de ingresso formal em juízo[2].

 

Esse movimento apresenta indiscutíveis ganhos de eficiência e eficácia para o sistema de crédito, na medida em que reduz o tempo e os custos normalmente associados à via judicial. Entretanto, essa mesma dinâmica acende o alerta em relação à proteção dos direitos fundamentais do devedor, em especial, aqueles consagrados no artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como o devido processo legal, a inviolabilidade do domicílio e o acesso à jurisdição[3].

 

De fato, sob a lente econômica e contratu­alista, a busca e apreensão extrajudicial manifesta-se como instrumento de efetividade, tendo em vista que o credor possui um título executivo e uma garantia real que justificam uma resposta rápida em face do inadimplemento. Nesse cenário, o procedimento extrajudicial se apresenta como meio apto a liberar o bem alienado e restituir ao mercado uma coisa que, inerte, comprometia a liquidez do crédito. Autores especializados destacam que a sistemática extrajudicial, desde que observados requisitos formais mínimos, a saber: notificação, possibilidade de impugnação, registro da consolidação da propriedade, pode coexistir com princípios constitucionais.

 

Porém, esse mesmo arcabouço legal e doutrinário não exime o procedimento das críticas mais severas, sendo que um dos principais pontos de tensão reside justamente no deslocamento da tutela estatal e da jurisdição para um panorama predominantemente privado ou extrajudicial. Conforme analisa Emilio Guerra, ao permitir que entidades privadas, ou cartórios, assumam, mesmo que em rito regulado, funções próprias do Estado-juiz, instala-se o risco de inconstitucionalidade implícita pela fragilização dos direitos de defesa do devedor[4].

 

Essa tensão se revela em dois vetores principais, sendo o primeiro, o que tange à reserva de jurisdição, ou seja, a garantia segundo a qual nenhuma lesão ou ameaça a direito pode ser excluída de controle pelo Poder Judiciário (art. 5º, XXXV). A respeito disso, a crítica assinala que, ainda que a lei preveja mecanismo de impugnação e eventual acesso à via judicial, na prática o devedor pode experimentar prejuízos irreversíveis antes mesmo de ter oportunidade efetiva de agir em juízo[5].

 

Em segundo, pode-se mencionar acerca do risco que a busca extrajudicial, ao permitir a execução do contrato com menor intervenção estatal, acabe por submeter o devedor a um procedimento que se assemelha a uma tomada de bem com menor proteção do que a prevista para hipóteses de execução judicial ou procedimentos de desapropriação. A inviolabilidade do domicílio, por exemplo, pode ficar vulnerável se não houver clareza quanto ao ingresso físico ou ao bloqueio eletrônico do bem, ou ainda se a sistemática de notificação for deficiente.

 

É válido ressaltar, entretanto, que o próprio STF reconheceu a constitucionalidade dos dispositivos que permitem a busca e apreensão extrajudicial, ao menos em tese, desde que observadas determinadas condições de legalidade, publicidade e possibilidade de controle judicial subsequente. Salienta-se que esta decisão corrobora que o Tribunal entendeu que a eficiência do sistema de crédito não se choca, fundamentalmente, com a Constituição, mas que a compatibilidade dependerá do grau de salvaguardas efetivas.

 

Nesse sentido, o procedimento extrajudicial deixou de ser um simples atalho para retomada de bens e passou a exigir uma formalização rigorosa mediante previsão contratual, notificação pessoal ou por edital, possibilidade de impugnação e registro público da consolidação da propriedade, entre outros requisitos.

 

Entretanto, é imperioso reconhecer que, na realidade, a efetiva comprovação desses critérios básicos muitas vezes não ocorre de forma transparente e a supervisão das ações fora do âmbito judicial ainda está em seus estágios iniciais. Os estudiosos chamam a atenção para a disparidade entre quem empresta e quem deve, geralmente um consumidor ou alguém em posição frágil em um contrato, e para a tendência do processo extrajudicial, por sua natureza ágil e descomplicada, de beneficiar quem já possui poder no contrato5. O resultado prático pode ser a rápida perda dos direitos do devedor antes que ele compreenda completamente a situação ou tenha meios para se proteger de maneira eficaz. Essa desigualdade nos leva a questionar: será que estamos utilizando os métodos extrajudiciais de uma forma que prejudica o direito a um processo justo, priorizando a agilidade nos contratos?

 

Diante de tudo que fora mencionado, observa-se que a execução extrajudicial de garantias se mostra, sem sombra de dúvidas, uma ferramenta valiosa para impulsionar o crédito e as garantias reais. Contudo, ao se tornar um procedimento quase que automático, com pouca supervisão do Estado e proteção falha dos direitos, pode facilmente se transformar em um perigo real ao princípio do devido processo legal, ao direito de propriedade e à proteção judicial. A linha tênue entre ferramenta e ameaça reside, portanto, na existência e na eficácia das proteções oferecidas ao devedor e não somente em normas teóricas. Destarte, a avaliação cuidadosa das ADIs 7600, 7601 e 7608 é fundamental para definir os limites desse balanço entre eficiência e proteção constitucional.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Ao ponderarmos sobre as ADIs 7600, 7601 e 7608, torna-se evidente o dilema jurídico e ético central, o embate entre a eficácia do crédito e a proteção dos direitos básicos na busca e apreensão extrajudicial de bens sob alienação fiduciária. Por um lado, o veredito do Supremo Tribunal Federal valida a constitucionalidade dos procedimentos extrajudiciais, reconhecendo a agilidade como fator determinante para o mercado financeiro e a estabilidade dos acordos. Por outro, fica claro que a busca pela efetividade não justifica o enfraquecimento do devido processo legal, do acesso à justiça e da dignidade do indivíduo devedor.

 

Foi evidenciado que as vias extrajudiciais representam opções válidas, contanto, que medidas protetivas básicas sejam implementadas. Tais medidas devem garantir que o devedor esteja ciente do processo, tenha o direito de se defender e possa solicitar uma revisão judicial. Sem isso, a desjudicialização pode se desvirtuar, tornando-se uma forma de privatização da justiça, onde interesses financeiros prevalecem sobre a proteção de direitos assegurados pela Carta Magna de 1988. A apreensão de bens, quando executada sem comunicação prévia, sem clareza ou em situações de fragilidade social, pode deixar de ser um instrumento para equilibrar contratos e se transformar em uma ferramenta de pressão e exclusão. 

 

Destarte, a questão central não é meramente aceitar ou rejeitar a extrajudicialidade, mas sim reavaliá-la sob a perspectiva da Constituição. É imperioso entender que a proteção do crédito e a defesa dos direitos fundamentais não são valores conflitantes, mas sim elementos que podem coexistir em um sistema jurídico comprometido com a justiça social. Para alcançar esse objetivo, o fortalecimento do papel dos cartórios, a supervisão do Ministério Público, a conduta ética dos credores e a educação jurídica da população são passos importantes para tornar esse modelo mais humano, fiscalizado e alinhado com os princípios constitucionais.

 

Diante do que foi observado ao longo deste artigo, é possível concluir que a busca e apreensão fora do âmbito judicial pode ser um passo positivo para otimizar processos. Contudo, para ser considerada justa, é imprescindível que ela esteja em sintonia com a ideia de que o processo serve para proteger, e não para criar barreiras. A modernização real do direito depende, acima de tudo, da valorização dos direitos humanos, do equilíbrio e da criação de relações legais mais justas entre quem deve e quem cobra. Apenas dessa forma, será viável equilibrar o direito de propriedade com o respeito às leis, sem que um prejudique o outro.



[1]GUERRA, Emílio. A inconstitucionalidade implícita da busca e apreensão extrajudicial realizada por empresas privadas: uma análise crítica da decisão do STF nas ADIs 7600, 7601 e 7608. Colégio Registral do RS, 2024. Disponível em: https://colegioregistralrs.org.br

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[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF valida perda extrajudicial de bens em caso de não pagamento de dívidas. Brasília, 2024. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-valida-perda-extrajudicial-de-bens-em-caso-de-nao-pagamento-de-dividas/. Acesso em: 30 out. 2025.

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[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF valida perda extrajudicial de bens em caso de não pagamento de dívidas. Brasília, 2024. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-valida-perda-extrajudicial-de-bens-em-caso-de-nao-pagamento-de-dividas/. Acesso em: 30 out. 2025.

 

[4]  GUERRA, Emílio. A inconstitucionalidade implícita da busca e apreensão extrajudicial realizada por empresas privadas: uma análise crítica da decisão do STF nas ADIs 7600, 7601 e 7608. Colégio Registral do RS, 2024. Disponível em: https://colegioregistralrs.org.br. Acesso em: 01 nov. 2025

[5] MARTINS, T. A.  A inconstitucionalidade da busca e apreensão extrajudicial. JusBrasil Artigos Jurídicos, 2024. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-inconstitucionalidade-da-busca-e-apreensao-extrajudicial/3817925893. Acesso em: 31 out. 2025.

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