A APLICAÇÃO DO PROTOCOLO DE JULGAMENTO COM PERSPECTIVA DE GÊNERO NA JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO: DESAFIOS E PERSPECTIVAS
- Lilian Scavuzzi
- 21 de mai.
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Lílian Scavuzzi
Mestrado em Direito, Justiça e Desenvolvimento (IDP/Brasília), Diploma de Estudos Avançados em Direito Penal (Universidade Pompeu Fabra/Barcelona), Especialização em Direito Público (UNIFACS/Salvador) e em Direito Militar (CBEPJUR/Rio de Janeiro). Analista Judiciária e Assessora Jurídica de Ministro do Superior Tribunal Militar.
Introdução
A promoção da igualdade de gênero constitui imperativo constitucional e convencional que atravessa todo o sistema jurídico brasileiro. Com a publicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2021, reforçou-se a necessidade de que todos os ramos do Poder Judiciário, inclusive a Justiça Militar da União, adaptem seus métodos de interpretação e decisão para assegurar a efetividade dos direitos fundamentais das mulheres.
O Protocolo orienta magistradas e magistrados a identificar estereótipos de gênero, reconhecer a violência estrutural e aplicar corretamente normas constitucionais e tratados internacionais de direitos humanos. Nesse contexto, o presente artigo propõe uma reflexão sobre os desafios e as perspectivas da aplicação do Protocolo no âmbito da Justiça Militar da União, tradicionalmente marcada por forte cultura hierárquica e predominantemente masculina.
Busca-se demonstrar que a implementação da perspectiva de gênero no processo penal militar é medida que reforça, e não enfraquece, os princípios fundamentais da instituição, fortalecendo a legitimidade da Justiça Militar perante a sociedade democrática.
1 O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero: conteúdo e finalidade
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero foi aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça com o objetivo de orientar o Poder Judiciário na adoção de práticas interpretativas que assegurem a igualdade substancial entre homens e mulheres, em especial no enfrentamento de casos de violência e discriminação de gênero[1].
Em sua fundamentação, o documento resgata compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Convenção de Belém do Pará, que impõem ao Estado o dever de prevenir, punir e erradicar a violência baseada no gênero[2].
Entre os princípios destacados no Protocolo, estão a necessidade de identificação de estereótipos e preconceitos, a análise da interseccionalidade das vulnerabilidades e a interpretação das normas à luz dos direitos humanos das mulheres[3]. Tais diretrizes obrigam o julgador a ir além da neutralidade aparente, reconhecendo as assimetrias históricas que permeiam os processos judiciais.
No âmbito da Justiça Militar da União, a incorporação desses parâmetros revela-se indispensável diante de uma realidade institucional que, por muito tempo, invisibilizou as experiências de mulheres militares e civis vítimas de violência ou discriminação em contextos castrenses.
2 A Justiça Militar da União e os desafios para a incorporação da perspectiva de gênero
A Justiça Militar da União, enquanto ramo especializado do Poder Judiciário, tem como missão assegurar a legalidade e a disciplina no âmbito das Forças Armadas. Historicamente estruturada sobre valores como hierarquia e disciplina, sua atuação sempre esteve mais voltada para a preservação da organização militar do que para a análise de vulnerabilidades sociais específicas.
Contudo, o ingresso crescente de mulheres nas Forças Armadas e a emergência de demandas por igualdade e proteção contra a violência de gênero exigem uma transformação cultural e institucional. Casos de assédio sexual, violência de gênero e discriminação no ambiente militar revelam a necessidade de que o julgamento de tais fatos se dê à luz de uma perspectiva que reconheça as dinâmicas de poder e as barreiras estruturais enfrentadas pelas mulheres[4].
Nesse sentido, a Juíza Federal Mariana Queiroz Aquino ressalta a importância de políticas institucionais que previnam práticas discriminatórias e assegurem ambientes respeitosos e seguros para as mulheres no âmbito da Justiça Militar da União[5]. A autora aponta que a estrutura castrense, por sua especificidade histórica, exige a adoção de medidas afirmativas que reconheçam a desigualdade de gênero e promovam a inclusão.
O ambiente militar, predominantemente masculino e hierarquizado, pode potencializar relações de subordinação que favorecem a perpetuação de práticas discriminatórias, muitas vezes naturalizadas sob o pretexto da disciplina e da tradição[6]. Ignorar tais fatores ao julgar crimes militares que envolvem violência ou discriminação de gênero significa perpetuar a invisibilização das vítimas e negar a elas o acesso efetivo à Justiça.
Além disso, a ausência de protocolos específicos internos que orientem a aplicação da perspectiva de gênero na Justiça Militar dificulta a uniformização das decisões e a garantia de julgamentos mais sensíveis às especificidades dos casos. Nesse aspecto, destaca-se a atuação da Ministra Maria Elizabeth Rocha, que, ao assumir a presidência do Superior Tribunal Militar, afirmou o compromisso institucional com a promoção da igualdade de gênero e a superação das desigualdades estruturais[7].
Em abril do corrente ano, foi criado no âmbito do STM, o Comitê Pró-Equidade e de Políticas Antidiscriminatórias[8], com a finalidade de assessorar a Ministra-Presidente em assuntos relacionados ao tema; analisar e propor medidas de promoção da igualdade, da equidade e de prevenção de atos discriminatórios; assim como sugerir e desenvolver, quando for o caso, programas de capacitação; entre outras medidas, que demonstram o comprometimento da atual presidência.
Trata-se, portanto, de um desafio não apenas jurídico, mas também cultural e formativo, que exige a capacitação contínua de magistrados e membros do Ministério Público Militar em temas de direitos humanos e gênero. Nesse contexto, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero revela-se ferramenta essencial para que a Justiça Militar da União possa interpretar e aplicar o direito de maneira compatível com os princípios constitucionais e convencionais de igualdade e dignidade da pessoa humana[9].
Considerações Finais
A implementação do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero na Justiça Militar da União representa não apenas uma exigência normativa, mas um passo indispensável para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito no âmbito castrense.
Aplicar a perspectiva de gênero no processo penal militar significa reconhecer que o direito não é neutro e que desigualdades históricas, estruturais e institucionais impactam diretamente o acesso das mulheres à justiça, mesmo em ambientes tradicionalmente associados à hierarquia e disciplina.
O desafio que se impõe à Justiça Militar não é o de abandonar seus princípios estruturantes, mas de reinterpretá-los à luz da dignidade humana, da igualdade substancial e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. A adoção efetiva da perspectiva de gênero em julgamentos militares reforçará a legitimidade da Justiça Militar perante a sociedade e contribuirá para a construção de um ambiente castrense mais justo, inclusivo e respeitador dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, a formação contínua dos operadores do Direito Militar, a revisão de práticas institucionais e a atuação vigilante do controle de convencionalidade constituem instrumentos indispensáveis para que a perspectiva de gênero deixe de ser uma aspiração e se torne uma realidade concreta na Justiça Militar da União.
Lembremo-nos da importante contribuição da Dra Ivana Farina, Procuradora de Justiça do MPGO e ex-Conselheira do CNJ, no IV Café da Corte realizado pelo Coletivo Amigas da Corte em 7 de abril de 2025, em debate com o Ministro do STJ Rogério Schietti, ao citar “Arenga aos Magistrados que Estreiam”, do magistrado francês Oswald Baudot: “Não vos contenteis de cumprir os deveres do ofício. Vereis desde logo que, para ser um pouco úteis, devereis abandonar os caminhos batidos. Tudo o que fizerdes de bom será um acréscimo. Gosteis ou não, tendes um papel social a desempenhar. Sois assistentes sociais. Vossa decisão não termina numa folha de papel. Ela corta na carne viva. Não fecheis vossos corações ao sofrimento nem vossos ouvidos ao clamor.”
[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 20 abr. 2025.
[2] CONVENÇÃO INTERAMERICANA para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). Promulgada no Brasil pelo Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996.
[3] PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.
[4] RIBEIRO, Andressa Gonsalves. A importância da perspectiva de gênero na atuação do sistema de justiça criminal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2021.
[5] AQUINO, Mariana Queiroz. Conhecendo a Prevenção e o Combate ao Assédio e à Discriminação na JMU. Justiça Militar da União: Cartilha Institucional, 2021. Disponível em: https://assets.ctfassets.net/uhl68sfjpfvs/4IDyuGAft9D0qqlGCXtfDg/c1ba83a0a16920f93243fb6e5de8515d/cartilha-justica-militar.pdf. Acesso em: 25 abr. 2025.
[6] BOUCAULT, Luís Alberto. Hierarquia militar e direitos fundamentais. Revista da Escola Superior da Magistratura Militar, v. 9, p. 45–66, 2022.
[7] ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira. Discurso de posse na Presidência do Superior Tribunal Militar (2025–2027). Brasília: STM, 2025. Disponível em: https://www.stm.jus.br/informacao/agencia-de-noticias/item/14411-ministra-maria-elizabeth-rocha-toma-posse-como-presidente-do-superior-tribunal-militar. Acesso em: 25 abr. 2025.
[8] Ato Normativo Nº 842 que instituiu, no âmbito do Superior Tribunal Militar, o Comitê Pró-Equidade e de Políticas Antidiscriminatórias.
[9] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br. Acesso em: 20 abr. 2025.
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