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77 ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E A SELETIVIDADE DOS DIREITOS HUMANOS

  • Clarissa Lìma
  • há 4 dias
  • 8 min de leitura



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Clarissa Lìma

Mulher Negra, Defensora Pública da Bahia e Defensora Pública Interamericana(2025/2028), Mestra em Direitos Humanos e Cidadania - UnB.



Passados 77 anos desde a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), pode-se realmente afirmar que esses direitos são universais? Ou melhor: compreendemos, de fato, o contexto histórico em que este farol ético dos direitos humanos foi promulgado?


A DUDH foi promulgada no dia 10 de dezembro de 1948, pouco mais de três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, trazendo, em seus 30 artigos e 7 considerandos, a pretensão de garantir direitos fundamentais a todas as pessoas, sem discriminação. Contudo, ao observarmos o contexto político e histórico da época, percebemos que a universalidade proclamada no documento estava longe de ser uma realidade. Cerca de 90% dos países africanos, por exemplo, ainda viviam sob sistemas coloniais.


Dos 54 países existentes na África naquela época, apenas 4 — África do Sul, Egito, Etiópia e Libéria — haviam conquistado sua independência. Mesmo após a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), muitos anos de luta foram necessários para que esses e outros povos alcançassem sua plena liberdade como nações soberanas.


Isso nos leva a refletir: aquela declaração, concebida com o objetivo de abraçar toda a humanidade, não deveria  ter sido destinada aos colonizados também? Ou será que as pessoas submetidas à colonização não eram nem sequer reconhecidas em sua plena humanidade?


Direitos universais, afinal, para quem?


A narrativa dos direitos humanos universais carrega, desde seu surgimento, uma contradição intrínseca: como garantir direitos para toda a humanidade se sua própria formulação e aplicação histórica sempre foram marcadas pela seletividade? Durante esse processo, corpos, territórios e epistemologias foram frequentemente excluídos.


Daí emerge a necessidade de revisitar o contexto histórico da elaboração da DUDH, questionando os países que protagonizaram sua formulação e os interesses que representavam.


Pode-se afirmar, por exemplo, que Estados Unidos e França desempenharam um papel central nesse processo. O comando da Comissão de Direitos Humanos da ONU, responsável pela redação da declaração, estava nas mãos de Eleanor Roosevelt (EUA), enquanto René Cassin (França), um os principais redatores da Declaração,  ocupava a vice-presidência. Além disso, é significativo lembrar que a Assembleia Geral das Nações Unidas, que aprovou a DUDH em 1948, ocorreu em território francês, apontando para a influência marcante desses países na construção deste importante documento[1].


Embora esses países tenham se colocado como protagonistas na defesa dos direitos humanos universais — ou, como afirma o próprio texto da declaração, dos direitos de todos os “homens” (utilizando, ainda, uma terminologia patriarcal) —, o paradoxo reside nas profundas contradições históricas. A França, frequentemente exaltada como um símbolo de progresso nos direitos humanos, ainda era uma potência colonizadora em 1948 e permaneceu assim por longos anos.


No exato período da promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), o país cometia sistemáticas violações contra os povos que submetia ao domínio colonial, tanto no continente africano quanto em outras regiões.


O regime colonial francês se manteve por anos após 1948, resistindo a movimentos de libertação nacional. Um exemplo emblemático foi a Guerra da Argélia (1954–1962), marcada por brutais violações de direitos, incluindo tortura, massacres e repressão violenta — tudo isso sob a vigência da recém-promulgada declaração, que pregava os ideais de liberdade, igualdade e dignidade para todos.


Contradição ou a lógica da dominação colonial em pleno vigor?


O caso da Argélia foi minuciosamente acompanhado pelo relevante teórico Frantz Fanon (2021), psiquiatra e filósofo nascido na Martinica, que atuou na Argélia durante o período colonial francês.


Fanon não se limitou a denunciar as violências físicas e psicológicas impostas pelo colonialismo, mas analisou como o sistema colonial desumanizava os indivíduos, comprometendo a saúde mental e a autonomia dos povos subjugados. Seu legado evidencia uma contradição fundamental: enquanto a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) se apresentava como expressão de um ideal universal, as práticas coloniais reiteravam a exclusividade e a seletividade de quem era reconhecido como parte da “zona do Ser” — ou seja, aqueles considerados plenamente humanos — e quem era relegado à “zona do não-Ser”, onde se situavam os povos despojados de sua humanidade.


Retomar essa análise crítica sobre a DUDH é essencial, especialmente por se tratar de um documento claramente concebido como resposta direta às duas guerras mundiais. Esse período foi, sem dúvida, marcado por violações massivas que não podem e nem devem ser esquecidas. Entretanto, o que se pretende problematizar aqui é que violações anteriores a essas guerras, tão graves quanto, não receberam a mesma resposta jurídico-política. Um exemplo nítido é o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas: mais de 12 milhões de africanos foram forçados a cruzar o Atlântico para serem escravizados nas Américas, perdendo suas famílias, territórios, culturas, línguas e sendo expropriados em sua própria humanidade.

Outro exemplo marcante é a dizimação dos povos originários, que, segundo pesquisas, resultou na morte de mais de 70 milhões de pessoas em todas as Américas. Essa tragédia reflete a lógica de genocídio e extermínio sistemático que acompanhou a colonização.


Por fim, pode-se citar o caso do Brasil, onde o sistema colonial e escravocrata não apenas reduziu pessoas negras à condição de propriedade, mas também perpetuou uma exclusão estrutural que permanece até os dias de hoje. Mesmo após a abolição da escravidão, em 1888, não foram implementadas políticas públicas suficientes para integrar a população negra, majoritariamente formada por descendentes da diáspora africana. Como consequência, ainda observamos a discriminação cultural, o menosprezo pelas religiões de matriz africana e a desvalorização dos saberes produzidos por essas comunidades, que são frequentemente subdimensionados como fontes geradoras de conhecimento.


A seletividade, portanto, está em todos os lados. Ela é uma lógica estrutural e estruturante, que atravessa as mais diversas esferas da sociedade.


Por isso, como bem destaca a constitucionalista Thula Pires (PUC-Rio), é necessário racializar o debate sobre direitos humanos, reconhecendo que as desigualdades históricas e estruturais não podem ser superadas sem incluir a questão racial no centro da discussão.


Ao refletirmos sobre o conceito de seletividade nos direitos humanos, percebemos que ele vai além de uma interpretação limitada ao campo da política criminal. A seletividade deve ser entendida como uma racionalidade política estruturada pela lógica colonial, que historicamente restringe o acesso a direitos com base em critérios como raça, gênero, classe e outras categorias sociais. Trata-se de um mecanismo de exclusão sistemático e enraizado.


No Brasil, esse fenômeno está intimamente relacionado aos legados da colonialidade — um padrão de poder que perdura mesmo após o fim formal do colonialismo. Após quase quatro séculos de escravidão, a sociedade brasileira herdou estruturas profundamente hierarquizadas, em que raça e classe são determinantes no acesso a direitos fundamentais. Essa lógica segrega a população em esferas de privilégio e exclusão, perpetuando desigualdades históricas.


Embora o termo "seletividade" seja comumente associado à política criminal — especialmente no contexto de sistemas penais marcados pela racialização, como o encarceramento em massa de jovens negros —, é crucial expandir essa análise para além desse campo. A seletividade é uma dinâmica estrutural que permeia diversos aspectos da vida social, restringindo direitos e oportunidades de forma sistemática e contínua, reforçando mecanismos de desigualdade histórica.


A seletividade nos direitos humanos no Brasil manifesta-se em diversas dimensões da vida social, evidenciando um quadro de exclusão sistemática, como pôde ser constatado em pleno ano de 2025.


Não é necessário muito esforço para perceber como as populações negras e indígenas continuam sofrendo com uma desassistência histórica. Essa exclusão se reflete, por exemplo, na ausência de hospitais em territórios indígenas e nas alarmantes taxas de mortalidade materna entre mulheres negras, que são pelo menos duas vezes maiores do que entre mulheres brancas. Esses dados são um reflexo claro das desigualdades estruturais profundamente enraizadas na sociedade brasileira.


Na educação, o abismo no acesso à educação de qualidade permanece evidente. Essa exclusão tem raízes em marcos históricos como a primeira experiência constitucional do Brasil, que negava às pessoas negras o direito à educação formal, uma vez que elas sequer eram reconhecidas como cidadãs. Essa dívida histórica perpetua desigualdades que atravessam gerações e se refletem nas oportunidades limitadas para essas populações.


Além disso, o direito à moradia e ao território é outro campo marcado pela seletividade. Disputas seculares por terras indígenas e quilombolas continuam sendo uma realidade gritante.


Essas lutas são agravadas por políticas de remoção forçada, que afetam principalmente as populações negras e periféricas nos centros urbanos. Um dado alarmante é que grande parte das terras quilombolas ainda permanecem sem titulação, o que as deixa vulneráveis a conflitos fundiários e à violação permanente de seus direitos.


Chegamos, assim, à questão da justiça climática, que, embora afete todas as pessoas, não o faz de forma igualitária. Diante de emergências climáticas, a lógica extrativista e neoliberal avança, comprometendo de maneira desproporcional os direitos de ribeirinhos, povos indígenas e comunidades tradicionais: enquanto áreas urbanas ricas recebem assistência imediata, regiões periféricas e populações vulnerabilizadas são frequentemente deixadas no abandono.


Por isso, defende-se aqui, para além de uma problematização sobre o alcance da Declaração Universal dos Direitos Humanos — que, de fato, serve como um farol ético para diversos tratados internacionais e princípios fundamentais consagrados na Constituição brasileira —, a necessidade de deslocar e expandir a discussão sobre a seletividade. É fundamental ir além do campo da política criminal, ampliando o debate para abarcar a repercussão das heranças coloniais nos Direitos Humanos, enfrentando não só as consequências do racismo, mas também a sua causa para fins de ver transformada a realidades das pessoas historicamente vulnerabilizadas.


Em tempo, oportuno alertar que contribuir com um viés crítico acerca da seletividade no campo dos direitos humanos não significa negar os ideais de universalidade. Trata-se, em verdade, de um movimento fundamental para garantir sua verdadeira efetividade encarando os efeitos da colonialidade na contemporaneidade.


Isto porque, mesmo após o fim do colonialismo formal, padrões coloniais continuam a moldar a maneira como organizamos a sociedade, determinando quem tem acesso a bens e direitos e quem é sistematicamente interditado de alcançá-los. Essas heranças coloniais permanecem profundamente enraizadas, influenciando nossas epistemologias, práticas econômicas, culturais e, de forma especialmente marcante, nossa cultura jurídica.


No Brasil, a colonialidade se manifesta de maneira explícita na cultura jurídica, que frequentemente subdimensiona ou ignora narrativas não-hegemônicas, como as dos povos originários e das comunidades afro-brasileiras. Essas epistemologias, repletas de saberes e experiências, continuam marginalizadas, evidenciando que o racismo estrutural e a seletividade na aplicação dos direitos humanos são expressões diretas do legado colonial.

Isso nos leva a uma pergunta crucial: é possível afirmar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) atinge efetivamente todos os sujeitos, quando sua implementação ainda está limitada por uma lógica colonial de exclusões e privilégios?


Ampliar o debate sobre a seletividade dos direitos humanos é uma tarefa urgente e indispensável. Não basta limitá-lo às dinâmicas da política criminal; é necessário integrar outras camadas de análise, que abordem como os fundamentos epistemológicos e históricos sustentam essas desigualdades. O desafio não está apenas em identificar as consequências dessa seletividade, mas em enfrentar diretamente as suas causas, como o racismo estrutural. Apenas ao confrontarmos esses legados coloniais será possível avançar rumo à concretização de direitos humanos verdadeiramente para todas as pessoas.


Sim, precisamos falar sobre a seletividade nos direitos humanos, especialmente ao refletir sobre os 77 anos da DUDH. Afinal, o caminho para a universalidade passa, necessariamente, pela problematização das exclusões estruturais e históricas que continuam a moldar a nossa sociedade.


Que este escrito ilumine questões que talvez ainda não tenhamos enfrentado com a profundidade necessária e nos inspire a fortalecer, a começar pelos nossos vieses imaginários, novos caminhos e possibilidades que desejamos alcançar.



Referências:

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FANON, Frantz. Por uma revolução africana: textos políticos. Rio de Janeiro: Zahar,

2021b.

PIRES, Thula. Racializando o debate sobre direitos humanos: Limites e possibilidades dacriminalização o racismo no brasil. SUR 28, [s. l.], v. 15 n. 28, p. 65-75, 2018. Disponível em: https://sur.conectas.org/wp-content/uploads/2019/05/sur-28-portugues-thula-pires.pdf

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração Universal dos Direitos

Humanos. Rio de Janeiro: Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio), 2025. Disponível em: https://brasil.un.org/sites/default/files/2025-03/ONU_DireitosHumanos_DUDH_UNICRio_20250310.pdf


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